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O que muda com o PL 5069/13?

  • Bruna de Lara
  • 26 de out. de 2015
  • 10 min de leitura

alvo com flecha acertando o meio onde está a silhueta de uma mulher grávida

Ilustração por Raquel Thomé



O conceito de violência sexual [A]


Como é agora: A lei brasileira considera violência sexual qualquer forma de atividade sexual não consentida.


O que muda: apenas as práticas que resultarem em danos físicos e/ou psicológicos comprovados serão consideras violência sexual.


Por que isso é preocupante?


Primeiramente, a mudança restringe o atendimento às vítimas de estupro, como mostraremos abaixo. Em segundo lugar, ao condicionarmos a existência da violência sexual à comprovação de danos e não à ausência do consentimento sexual, abrimos espaço para uma naturalização cada vez maior de diversos tipos de abuso.


Se uma mulher é molestada enquanto dorme, por exemplo, não é ela uma vítima de violência sexual? Se condicionarmos a definição legal de violência sexual à comprovação de danos físicos ou psicológicos, não estamos afirmando que, nesse caso, não houve estupro? Ou que seria “menos estupro” do que o caso clássico, que traz marcas físicas na vítima? Não estamos invisibilizando os casos de estupro que não deixam vestígio?


Hoje, mesmo com a lei expressando claramente que qualquer ato sexual não consentido caracteriza uma violência, a sociedade ainda é capaz de fazer piada e deslegitimar a dor de milhares de mulheres forçadas a tomar parte em atos sexuais não desejados – ou seja, a dor de mulheres sexualmente abusadas. Na contramão dos esforços de conscientização sobre o abuso sexual, o PL 5069 irá tirar ainda mais a força da vontade da mulher. Pouco importa se ela quis ou não. O que passa a valer é a comprovação de danos.



O aborto em caso de estupro [B]


Como é hoje: Não é necessário apresentar B.O. ou conseguir autorização judicial para a realização do aborto até a 20a semana e se o peso fetal for inferior a 500g. Basta que a mulher dê seu relato.


O que muda: Para ter direito ao aborto legal, a mulher estuprada deve comprovar a violência sofrida através de registro na polícia e realização de exame de corpo delito.


Por que isso é preocupante?


Considerando que a precisão de um exame de corpo delito diminui à medida que sua realização se afasta da data do crime, a mulher estuprada será obrigada a registrar o crime e realizar o exame o mais rápido possível, sob a ameaça de perder seu direito ao aborto legal. Isso significa que, pouco depois de passar pelo que, provavelmente, é a experiência mais traumática de sua vida, essa mulher é obrigada a arrastar-se a uma delegacia cujos agentes são, na maior parte das vezes, terrivelmente despreparados, para fazer uma denúncia que ela talvez não deseje fazer, em um momento em que ela muito provavelmente estará fragilizada demais para contar – e, é claro, tentar provar – sua história a uma audiência nada receptiva.


Segundo estudo de 2011 do CEMICAMP, 80% das delegacias sofrem com a ausência de pessoal treinado para lidar com casos de violência sexual [1]. Não raro, a mulher violentada é tratada como suspeita pelos agentes que deveriam ajudá-la. Seu relato é posto em dúvida, assim como seu caráter: o que você estava fazendo na rua a essa hora? Por que saiu sozinha? O que você estava usando? Você estava bebendo? Por que saiu com esse homem? Mas ele não é seu esposo? Afinal, parecem estar perguntando, você foi uma vítima ou uma provocadora?


Ainda que o ambiente das delegacias fosse acolhedor e que o atendimento fosse perfeitamente adequado, entretanto, a obrigação de registro de ocorrência para casos de violência sexual perde de vista o fato de que, por razões emocionais, financeiras ou até mesmo de segurança, muitas mulheres não têm condições de denunciar seus agressores. Vale lembrar que, segundo dados do IPEA, em 67% dos casos de violência contra a mulher, o agressor é um parente próximo ou um conhecido, e que 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes [2].


A falta de apoio, o medo, a idade, a vergonha, os sentimentos da mulher por seu agressor e a tendência de nossa sociedade em culpabilizar as vítimas de estupro são razões pelas quais muitas mulheres decidem não denunciar formalmente os homens que as violentaram. Sem essa denúncia, entretanto, elas perderão o direito ao aborto legal, caso esse venha a ser necessário.


Ainda que seja de seu desejo fazer uma denúncia, pode ser que a possibilidade nem venha a passar na mente dessa mulher tão cedo. Ela acaba de passar, afinal, por uma violência traumática e o ímpeto de ser pragmática e seguir o passo-a-passo de uma lei que não leva em conta seus sentimentos e dores, pode simples e compreensivelmente não existir.


Forçar uma mulher que não está pronta para denunciar seu agressor – seja por realmente não desejar fazer isso ou por estar fragilizada demais no momento – a enfrentar o ambiente hostil de uma delegacia policial e a se submeter a um exame extremamente invasivo, sob a pena de perder o direito à interrupção de uma gravidez resultante de estupro, não é apenas um ato injusto, é uma violência brutal.



O atendimento nos hospitais [C]


Como é agora: Embora o Código de Ética Médica permita que qualquer profissional seja dispensado de realizar atos que vão contra sua consciência [1], a lei 12845/2013 exige que os hospitais públicos designem algum servidor que não se oponha à prática do aborto para lidar com o atendimento às mulheres que desejam realizar o procedimento, dentro dos casos permitidos por lei.


O que muda: os hospitais serão desobrigados de informar às mulheres vítimas de estupro comprovado por exame de corpo delito sobre seu direito ao aborto legal.


Por que isso é preocupante?


A lei 12845/2013, que garante o atendimento às vítimas de estupro no SUS, é considerada um divisor de águas na luta pelos direitos reprodutivos e sexuais. Mesmo com todas as suas garantias legais, entretanto, o atendimento às mulheres vítimas de violência ainda encontra enormes desafios.


Dados do IPEA mostram que cerca de 7% dos casos de estupro resultaram em gravidez em 2011, mas que 67,4% das mulheres estupradas não tiveram acesso ao aborto legal. Segundo nota do Ministério da Saúde solicitada pela Agência Pública, o aborto legal “pode ser realizado em todos os estabelecimentos do SUS que tenham serviço de obstetrícia. O acesso a estes atendimentos por meio do encaminhamento das pacientes, via centrais de regulação, aos serviços especializados. Ou seja, a mulher atendida em um hospital ou unidade de saúde é direcionada ao centro de referência que deve seguir as normas técnicas de atenção humanizada ao abortamento do Ministério da Saúde e a legislação vigente. Hoje são 65 serviços disponíveis, em 26 Estados” [1].


Entretanto, muitos hospitais continuam a desrespeitar a legislação: servidores blindam as mulheres das informações sobre seus direitos e as privam do fornecimento da pílula do dia seguinte. Ao escutar relatos de violência sexual, muitos dizem estar de mãos atadas e sequer se preocupam em encaminhar a mulher a uma instituição que disponha dos serviços de que necessita e a que tem direito. Enquanto isso, o próprio Ministério “se nega a fornecer a lista dos estabelecimentos preparados para esse atendimento, o que faz com que as vítimas dependam inteiramente do encaminhamento correto dos hospitais em que são socorridas” [1].


Com a desobrigação do fornecimento de informações, a tendência, claro, é piorar. A falta de atendimento adequado não mais será um desvio daquilo que estipula a lei, mas sim um padrão desastroso, juridicamente legitimado.


A pílula do dia seguinte [C]


Como é hoje: a pílula do dia seguinte não é considerada um meio abortivo, por impedir a gravidez em um momento em que nem é possível se descobrir se ocorreu ou não a fecundação. Ela é tida como um medicamento profilático, ou seja, de prevenção da gravidez. Por isso, ela é vendida livremente em farmácias e fornecida gratuitamente a vítimas de violência sexual em hospitais.


O que muda: Nada. Apesar do que vem sido amplamente divulgado nas redes sociais, provavelmente devido a uma manchete equivocada do G1, a venda da pílula do dia seguinte não é proibida pelo PL 5069, pois ela não é considerada um meio abortivo.


A “indução” ao aborto [D]


Como é hoje: apenas a mulher que abortar e a pessoa que realizar nela o procedimento podem ser punidos com pena de prisão. Aquele que induz, instiga ou auxilia a mulher a abortar é considerado culpado apenas de uma contravenção penal, ficando sujeito à multa.


O que muda: quem induzir, instigar ou auxiliar a mulher a abortar ou anunciar meios abortivos, ainda que sob o pretexto de redução de danos – como para impedir uma mulher de realizar procedimentos perigosos, por exemplo – poderá pegar de seis meses a dois anos de detenção. Caso o indivíduo seja um profissional da área de saúde, a detenção será de um a três anos. E, caso a mulher tenha menos de 18 anos, a pena é aumentada em um terço.


Por que é preocupante?


Prática comum em grupos de mulheres, a troca de informações sobre métodos abortivos, como o consumo de certos chás, por exemplo, passará a ser considerada crime. Mais preocupante do que isso: até aconselhar uma pessoa que, segundo as leis atuais, tem direito ao aborto legal, pode ser motivo para prisão.


Se uma amiga sua for estuprada, mas não registrar o crime na polícia, informá-la de que ela tem o direito de abortar poderá fazer você pegar de seis meses a dois anos de cadeia. Isso mesmo: com o PL, a não ser que sua amiga estuprada comprove o estupro através de registro na delegacia e exame de corpo delito, apresentar a ela suas opções será crime, porque ela não será considerada vítima de violência sexual.


Caso um profissional da área de saúde decida por informar à mulher vítima de estupro não comprovado por exame de corpo delito que ela poderia realizar um aborto, poderá pegar uma detenção de 1 a 3 anos, por se considerar que ele a está induzindo à prática do aborto ilegal [D].


***


Embora ultrajante, a aprovação do PL pela comissão certamente não surpreende. A CCJC tem 66 membros titulares. Desses, 29 (43,9%) fazem parte da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, ou seja, fazem lobby contra o aborto, e apenas 2 (3%) são mulheres [4]. O cenário à frente não é mais animador: segundo o DIAP, a composição atual do Congresso brasileiro é a mais conservadora desde 1964, ano em que ocorreu o golpe militar [5]; as mulheres ocupam apenas 51 (10%) das 518 cadeiras da Câmara [4]; e, dessas mulheres, 10 fazem parte da Frente Parlamentar Evangélica, que reúne 67 deputados [6].


São os homens que, hoje e sempre, legislam sobre os corpos das mulheres. Homens que, muito provavelmente, jamais conhecerão a dor de um estupro – e que, ainda que a conhecessem, nunca teriam a experiência de uma gravidez. Mais uma vez, a mulher vê sua autonomia sendo retirada por homens que não respeitam seus desejos, seus limites e seu direito de tomar decisões sobre seu corpo – como quem pode tocá-lo ou quando ele deverá levar a cabo um processo tão longo e fisicamente penoso quanto uma gestação. Como bem disse Clarissa Nunes, em post para o blog da Marcha Mundial das Mulheres [7]:


“(...) a palavra da mulher não basta. Seja para ser ouvida ao dizer ‘não’ para um ato sexual, seja para ser ouvida e acreditada quando contar ter sido vítima de um estupro. Hoje a Comissão de Constituição e Justiça legitima, novamente, a violência contra a mulher. Legitima, novamente, a inexistência de poder das mulheres sobre seus próprios corpos e retira a já fragmentada escolha sobre suas próprias vidas”.


***


[A] Redação atual: "Art. 2º Considera-se violência sexual, para os efeitos desta Lei, qualquer forma de atividade sexual não consentida."


PL 5069/13: "Art 2º Considera-se violência sexual, para os efeitos desta Lei, as práticas descritas como típicas no Título VI 7, da Parte Especial do Código Penal (Crimes contra a Liberdade Sexual), Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, em que resultam danos físicos e psicológicos."


[B] Redação atual: Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: .......

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.


PL 5069/13: II - se a gravidez resulta de estupro, constatado em exame de corpo delito e comunicado à autoridade policial, e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. (NR)


[C] Redação atual: "Art. 3º O atendimento imediato, obrigatório em todos os hospitais integrantes da rede do SUS, compreende os seguintes serviços: I - diagnóstico e tratamento das lesões físicas no aparelho genital e nas demais áreas afetadas; II - amparo médico, psicológico e social imediatos; III - facilitação do registro da ocorrência e encaminhamento ao órgão de medicina legal e às delegacias especializadas com informações que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da violência sexual; IV - profilaxia da gravidez; V - profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis - DST; VI - coleta de material para realização do exame de HIV para posterior acompanhamento e terapia; VII - fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e sobre todos os serviços sanitários disponíveis."

PL 5069/13: "Art. 3º... (...) III – encaminhamento da vítima, após o atendimento previsto no art. 1º, para o registro de ocorrência na delegacia especializada e, não existindo, à delegacia de polícia mais próxima visando a coleta de informações e provas que possam ser úteis à identificação do agressor e à comprovação da violência sexual; IV – Procedimento ou medicação, não abortivos, com eficiência precoce para prevenir gravidez resultante de estupro;

§ 4º Nenhum profissional de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo. (NR)”


[D] Redação atual: “Art. 20. Anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto:

Pena – multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis.

Pena - multa de hum mil cruzeiros a dez mil cruzeiros. (Redação dada pela Lei nº 6.734, de 1979)”


PL 5069/13: “Art. 126-A. Induzir ou instigar a gestante a praticar aborto ou ainda lhe prestar qualquer auxílio para que o faça, ainda que sob o pretexto de redução de dano: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, se o fato não constitui crime mais grave. § 1º Se o crime é cometido por agente de serviço público de saúde ou por quem exerce a profissão de médico, farmacêutico ou enfermeiro: Pena – detenção de um a três anos, se o fato não constitui crime mais grave.

§ 4º As penas aumentam-se de um terço se é menor de dezoito anos a gestante a que se induziu ou instigou à prática de aborto ou que recebeu instrução, orientação ou qualquer auxílio para praticá-lo."


Referências


[1] http://bit.ly/1x4bYsM

[2] http://bit.ly/1FsCjZi

[3] http://bit.ly/1PMaJsk

[4] http://bit.ly/1OXhHKn

[5] http://bit.ly/1vIHk6h

[6] http://bit.ly/1FJ15Eu

[7] http://bit.ly/1H07g2d


Revisado por Kauana Costa.

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