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Marcas no corpo e na alma

O relato autêntico de uma mulher que viveu uma relação abusiva por 10 anos. Os primeiros alertas, as agressões, a tomada de consciência e a tenacidade exigida para libertar-se.

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Olho no olho, presença constante, um amor que transborda. Uma atitude aqui e outra ali, não eram ‘ok’, mas tudo bem. Começo de relacionamento tem que relevar. Muito ciúme é sinal de cuidado, querer ter a pessoa sempre por perto é sintoma de amor.

Lá fora faz frio. No quarto, lençóis virados e pernas enroscadas. Intensidade. Foi com esse substantivo que Camila (30), descreveu o começo de uma relação, inicialmente, amorosa, que ocupou um terço (dez anos) de sua vida. Com duas graduações na bagagem, uma especialização concluída e uma vida financeira estabilizada, ela compreendia sua experiência como surreal. Hoje, sabe que o que viveu é a realidade de muitas mulheres. Alguém a machucou, alguém foi o termo usado por essa mulher para contar sua história. Como se no âmago de sua alma, a cicatriz, até aquele momento, não estivesse curada, como se dar um nome a esse alguém ainda fosse impraticável. Em nenhum momento, das mais de três mil palavras ditas, o nome dessa pessoa foi mencionado. Não ousei perguntar.

Primeiro veio toda essa ânsia de estar perto sempre, se afastou dos amigos, da família. Alguém a amava demais, ela não precisava de mais ninguém, a não ser dele. Percebeu que tinha algo errado, mas relevou, ele a amava demais. “- Ninguém vai te amar tanto assim”, alguém dizia. Depois de um tempo, alguém começou a ‘mostrar’ que as coisas em que ela acreditava estavam erradas: Ela estava interpretando errado, ouvindo errado, dizendo errado, vendo errado, e ninguém teria a capacidade de amá-la daquela forma, ninguém a aguentaria. O discurso era contínuo e tenaz. Aos poucos, acreditou que aquilo que alguém falava era verdade, duvidou da sanidade, pensou que estava com algum problema neurológico ou psíquico. Fez exames e nada foi encontrado. Mas, o verde agora era vermelho, por que alguém falou, com tanta frequência, que o verde não era verde, era vermelho. Chegou num ponto que imaginou estar ficando louca, que não tinha capacidade racional de entender a realidade, compreender os fatos, interpretar as falas.

De acordo com o artigo 7º da Lei nº 11.340/2006, “a violência psicológica, é entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularizarão, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;”

Os muros da prisão psicológica estavam construídos e os alicerces eram fortes, pois estava frágil, sozinha e sua verdade se tornou a verdade que alguém lhe contava. Só conseguiu perceber que aquilo não era saudável, depois de quatro anos juntos, quando o abuso foi parar na pele. A hostilidade ultrapassou o limite psíquico e as lesões, antes feitas na alma, agora também eram concebidas na carne. A mão que acalentava, era a mesma que apertava; os olhos que demonstravam carinho, eram os mesmos que emitiam raiva; a voz que declarava amor era a mesma que manipulava. Não conseguia entender o que estava vivendo, era incompressível que a pessoa amada, também se tornará o agressor. Uma nova fase do ciclo abusivo, exposto no início dessa matéria, começava e perduraria por mais seis anos. Foi agredida fisicamente uma, duas, quatro, oito vezes. E de todas as agressões sofridas: psicológica, emocional, física, sexual. A violência física foi a mais difícil de lidar, a mais complexa de superar.

Sofria calada, sentia vergonha de falar sobre o que estava vivendo. Coagida por alguém e pela percepção da sociedade patriarcal onde vive, que culpabiliza a vítima e esbraveja opiniões como: ‘ah, mas o que você fez para apanhar? O que aconteceu para apanhar?’. Sentia-se intimidada e era empurrada cada vez mais para o espiral de silêncio, de vergonha e de fragilidade, que por sua vez, torna a manipulação do abusador muito mais consciente, muito mais ativa e muito mais resultante. A convicção eminente de ser feita como algoz do abusador, calava a voz e ampliava as marcas, no corpo e na alma.

Segundo pesquisa realizada pelo DataFolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgada no começo do ano passado, só em 2016, 503 mulheres foram vítimas de agressão física a cada hora no país. Isso representa 4,4 milhões de brasileiras. Ainda de acordo com a pesquisa 52% das mulheres não denunciaram o agressor após a violência.

A insistência de fazer dá certo com aquela pessoa, transcenderam anos. Passando por três terapeutas diferentes, onde nas duas primeiras vezes foi manipulada a desistir, só começou a entender a dimensão do problema na terceira tentativa e decidiu que era hora de deixar a relação. Entre a decisão de separação, dizer para alguém que queria separar e efetivamente separar foram quase dois anos. Quando o abusador percebeu a tomada de consciência, mudou completamente, a máscara do carrasco, manipulador transfigurou-se na pessoa que ama muito e é a melhor pessoa do mundo.

A análise do psicólogo André Felipe sustenta esse processo: “A dificuldade de cindir com um relacionamento abusivo têm os mais diversos motivos, e cada vítima têm seus motivos em particular. Mas acredito que dá para destacar o tempo até a tomada de consciência como um complicador em comum entre essas vítimas. Já que quando essa tomada de consciência acontece a relação já permeia toda a vida da vítima: família, amigos, trabalho. Tornando assim mais difícil a mudança, que já não é algo fácil”, disse.

Uma briga interna resistente, razão e coração travavam uma batalha diária. Vive numa ambiguidade constante. Razão diz “Não é saudável, não estar fazendo bem, saia desse relacionamento, quebre o ciclo”, por outro lado, o coração grita “Fica mais um pouco, ele não é mau em todos os momentos, o amor tudo suporta. Fica mais um pouco”. Demora para perceber que aquele amor que transbordava, lá do primeiro parágrafo, é unilateral. De sua parte tudo é legítimo, mas o ‘amor’ que alguém oferece é agressivo, egoísta, manipulador e faz muito mal. O alguém que ama, é um ser idealizado, uma pessoa construída, inventada.

Entendeu que abuso não é amor, violência não é amor e quebrou o ciclo.

Um relacionamento que permeou grande parte da vida e deixou muitas sequelas psicológicas e cotidianas, de lhe dar com as outras pessoas e consigo mesmo. A batalha interior, ainda é assídua. Cada dia que se passa sem pensar em alguém, é uma vitória pessoal. As lesões do corpo, já não são mais visíveis e as do coração estão cicatrizando aos poucos. Não se deixa definir pelo que viveu. Não é mais vítima de um relacionamento abusivo disfarçado de amor.

Sobre a autora: Lídia Dias tem 23 anos e é Recife- PE. Graduanda em comunicação social, com ênfase em jornalismo, cursando o 7º período. Também faz parte da equipe de colunistas da ExpoLab. Adora ler, comer e dormir.

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