Refrigerante velho e remédios
- Kavita Sarmah
- 4 de set. de 2017
- 6 min de leitura
A história da minha tentativa de suicídio

*Artigo originalmente publicado no site Feminist in India, traduzido por Gisele do Nascimento com autorização da autora.
Na última sexta-feira, acordei relativamente cedo. Pluguei meu telefone no alto-falante, escovei os dentes enquanto escutava um pouco de rock alternativo, lavei a louça, fiz um chai de cardamomo e comecei meu dia. Considerando minha depressão persistente, aquele era um dos meus melhores dias. Quando soube do suicídio de Chester Bennington, mais cedo, senti um peso no coração. Notei que, mesmo com toda a minha conscientização e conhecimento sobre o quanto a depressão pode ser ardilosa, o fato dele ter tirado a própria vida ainda me chocava. Isso me motivou a escrever sobre algo sobre o qual quase nunca falo: minha tentativa de suicídio.
Aconteceu há alguns anos. A casa estava vazia: nossos pertences estavam em caixas de papelão, minhas ilustrações tinham sido retiradas das paredes, não havia fogão para fazer chá nem velas para iluminar. Estávamos de mudança para outro apartamento. Meu pai e sua esposa, que estavam na cidade na época, estavam me ajudando a organizar a mudança.
Agora aquele dia é como uma névoa, porque esquecer é um dos mecanismos de sobrevivência mais fortes (e menos saudáveis) que desenvolvi para lidar com meu estresse pós-traumático. Lembro de que estávamos no novo apartamento e ele cheirava a tinta fresca e poeira. Eu sempre me senti desconfortável perto do meu pai, como se sua presença me lembrasse do ambiente abusivo no qual cresci.
Não sei o que aconteceu, mas eu e meu pai começamos a brigar naquele dia, em meio à tinta, a poeira e as caixas. Eu mal lembro as palavras que dissemos um ao outro, mas ainda posso senti-las quando recordo como ele segurou meu pulso firme, até que eu o empurrei e me tranquei no outro quarto. Deitei em minha cama empoeirada, sentindo-me tão atordoada que as vozes no lado de fora pareciam a música de fundo de uma cafeteria que eu não conseguia distinguir bem.
Em algum momento, minha irmã chegou do trabalho e meu pai saiu com a esposa. Ainda não consigo lembrar do que aconteceu em meu quarto: talvez eu tenha chorado, gritado ou tenha ficado em completo silêncio. Saí do quarto algumas horas depois, exausta. Provavelmente conversei um pouco com minha irmã.
Não foi nada dramático. Nunca é tão dramático quanto imaginamos. Disse para minha irmã que iria tomar meus ansiolíticos, como faço todos os dias, pedi licença e fui para a cozinha. E foi isso o que eu fiz: só que dessa vez tomei catorze comprimidos, engolidos com refrigerante velho e sem gás que estava na geladeira. Depois eu adormeci. Minha irmã não soube o que eu tinha feito até a manhã seguinte, quando reclamei, com a fala entorpecida: “Por que estou acordada? Não queria acordar”, murmurei antes de perder os sentidos.
Não lembro bem dos dias seguintes, porque só acordava para vomitar repetidamente e desfalecer novamente. Minha irmã ligou para meu psiquiatra em pânico perguntando o que fazer naquela situação e ele a ajudou. Alguns dias depois, eu estava melhor.
Quando eu penso nessa época, sinto que não era eu, mas uma pessoa completamente diferente. Sempre fui otimista, e apesar de ter passado por épocas bem estressantes e difíceis, nunca tinha considerado o suicídio uma opção. Geralmente, ideias de dor e morte me apavoravam. Por isso, mesmo agora, a pessoa que eu era naquele momento é praticamente irreconhecível. Porém, a verdade é uma só: era eu mesma.
Nós temos essa ideia de que os transtornos mentais e o suicídio são situações dramáticas que não acontecem no mundo “normal” com pessoas “normais”, e que suicidas são apenas pessoas fracas, que riem e choram histericamente e são isoladas da sociedade. Na verdade, o suicídio acontece nos dias menos significantes e representativos. Não é raro que ele atinja um colega de trabalho alegre, uma celebridade inspiradora e equilibrada ou uma mulher que escreve artigos otimistas na internet.
Hoje em dia, quando penso na época em que eu decidi acabar com tudo, sempre me coloco sob a perspectiva de uma terceira pessoa. Nem eu consigo saber como eu me sentia naquele momento, e não saberei até que esteja naquela situação novamente. Eu lembro que não conseguia respirar muito bem. Talvez fosse a poeira ou o fato de que eu me sentia dolorosamente sem esperança.
Para mim, o gatilho foi o meu pai. Nada do que ele disse que me afetou especificamente. Foram suas sobrancelhas, as rugas em sua testa, o som e o tom da sua voz. Tudo isso me levou de volta a um momento semelhante de desamparo em minha infância, algo que eu tinha enterrado no fundo da minha memória até aquele momento. Eu não conseguia lidar com meus pensamentos de maneira racional. Lembro desse sentimento irracional de aversão e ódio por minha irmã naquele momento, justo ela com quem eu sempre me senti tranquila.
Esse desespero esmagador, que recai sobre você como um cobertor escuro e pesado, é realmente inexplicável. É comum encontrar pessoas que acham que o melhor a fazer é fazer com que os suicidas sintam uma obrigação de viver, lembrando a eles de sua família e seus amigos. É tão triste que a falta de conscientização leve a sociedade a considerar que é uma boa ideia fazer com que uma pessoa que já está desesperada sinta-se culpada. Um dos meus principais assuntos é a saúde mental porque a ignorância e o estigma entorno dela e do suicídio em nosso país são mais perigosos e destrutivos do que imaginamos.
Há alguns meses, circulou na imprensa a notícia de um estudante que pulou de um prédio depois de fazer um vídeo sobre suas intenções. Muitas pessoas que eu conheço comentaram nas redes sociais sobre como isso era ridículo, como o rapaz era covarde e que, se você tira a própria vida em vez de ser forte por amor à família, você é uma desgraça. Isso partiu meu coração. Chorei muito lendo esses textos e contei a minha irmã como me sentia impotente sabendo que hoje essas mensagens estão nos sites para qualquer um ler. Nós não nos damos conta de quanto nossa existência e nossas palavras afetam outras pessoas.
Querida leitora, não há muito que possamos fazer por alguém que está sofrendo por dentro. A depressão é como usar fones de ouvido no meio de uma multidão: quem está com eles mal consegue ouvir além da faixa em loop que está tocando. Mas há um gesto enorme que podemos fazer: sermos gentis. O melhor aspecto da gentileza é que você não precisa conhecer uma pessoa para ter empatia por ela. Os transtornos mentais existem, quer nós os compreendamos ou não. Por isso, é doloroso notar que as pessoas que sofrem desses transtornos geralmente não encontram qualquer apoio ou compaixão.
O tempo todo, os distúrbios psicológicos são normalizados de maneiras negativas e isso causa mais danos do que você imagina. Quando alguém conta que tem ansiedade e você responde “Pare de usar isso como desculpa! Você é capaz de vencer isso, vamos lá!” Talvez você ache que está motivando e ajudando, mas, na verdade, só está fazendo com que aquela pessoa entre em pânico e sinta que não está se esforçando o suficiente. Mas ela está. Todos estão se esforçando muito. Ninguém quer viver sentindo medo de tudo e de todos.
Eu acredito que a boa comunicação é a chave de qualquer conexão humana, mas nossa desinformação é um empecilho quando se trata de conversar com alguém com algum transtorno mental. Não é complicado, e não é preciso ter pressa para fazer tudo ficar bem. Tudo de que precisamos é uma mudança de nada, de “Vou te dizer o que fazer” para “Honestamente, não sei o que fazer, mas estou aqui para ouvir e vou tentar entender.”
Os transtornos mentais são caóticos, o suicídio é devastador e, às vezes, o mundo parece ser sempre cinza, chuvoso e nublado. Se você alguma vez sentir que chegou à beira do abismo, imploro para que deixe os ansiolíticos e o refrigerante sem gás de lado por enquanto. Apenas por enquanto. Em uma de suas entrevistas, falando sobre a depressão, Chester Bennington disse “você não precisa conhecer uma pessoa para conversar com ela. Basta dizer ‘vamos ter uma conversa franca...’ e se abrir, ser vulnerável. ”
Eu descobri que boa parte da minha paz de espírito está em escrever sobre minhas experiências e me abrir. Começou como uma maneira de me ajudar e naturalmente foi se transformando em uma maneira de ajudar outras pessoas. Por favor, se você puder, converse com alguém sobre como você se sente. Eu garanto que existem pessoas gentis e amorosas no mundo. E, se não houver mais ninguém, querida leitora, fale comigo. Entre em contato comigo através das redes sociais e eu vou arranjar tempo para te ouvir.
Vamos ser nós as pessoas gentis e amorosas do mundo.
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