top of page

No Chile, é a aprovado novo projeto de lei que versa sobre o aborto

  • Sabrina Aquino
  • 19 de jul. de 2017
  • 7 min de leitura


Até ontem, o Chile era um dos 7 países na América Latina e Caribe onde não se permite o aborto em nenhuma circunstância (os outros são: El Salvador, Honduras, Nicarágua, Haiti, Suriname e República Dominicana). Todos estes anos de negligência, obstruindo possibilidades seguras para milhares de mulheres que acodem em desespero a métodos de risco - muitas vezes clandestinos - para realizar um aborto, desvela um Estado que maneja um duplo discurso e que permanece indolente frente à urgentes demandas por direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.


Na madrugada de hoje, no entanto, foi aprovado no Senado (por 18 votos a favor e 16 contra) o projeto de lei que despenaliza o aborto terapêutico, promessa de campanha da atual mandatária Michele Bachelet. Levantado como um projeto de lei em 2014, foi colocado como uma das prioridades do Executivo, e apesar disso o projeto - agora lei - passou por diversas modificações e barreiras, demorando 3 anos para finalmente ser aprovado.


A lei visa a despenalização da interrupção da gestação em três causas (por isso é chamado, no Chile, de “proyecto en tres causales” ou, em tradução livre, “projeto em três causantes”), sendo elas: i. risco de vida da mãe; ii. inviabilidade fetal e iii.estupro; e, segundo menção do próprio “para que outorgue um tratamento digno a suas cidadãs”. Não obstante, para entender melhor que não se trata de um projeto que outorga autonomia às mulheres, e ainda impõe limitações ao seu direito de escolha, é necessário acompanhar a trajetória deste projeto pelos poderes legislativos chileno.


Antes da atual passagem deste PL pelo Senado, é importante mencionar que depois da aprovação geral deste projeto na comissão de saúde da câmara de deputados - por três votos a favor e dois contra – em 2016, o governo celebrou o que denominaram ser “um dos avanços mais emblemáticos de seu programa de Governo”. No dia 04 de julho de 2017, faltando por volta de 6 meses para o fim de seu mandato, juntamente com a coalizão denominada Nueva Mayoría que compõe seu governo, foi aprovado na Comissão de Saúde do Senado que a interrupção terapêutica deve passar por uma comissão médica que pode vetar a decisão da mulher, mesmo estando dentro das causas especificadas na lei.


O projeto inicial da presidenta Bachelet, em três anos de tramitação, seguiu sofrendo modificações que o deixou ainda mais limitado para responder às questões de urgência (ainda que mínimas) sobre aborto. Um exemplo concreto disso é o projeto impulsionado pela direita que “pretende proteger a vida dos bebês que estão por nascer no Chile” e a posição da senadora Carolina Goic (Democrata Cristiana) ao votar a favor para que menores de 14 anos vítimas de estupro devam receber autorização dos Juizados de Família, não bastando sua vontade ou a da comissão médica.


Detalhes e procedimentos finais que integram o projeto em três causantes


De acordo com a nova lei, o período limite da interrupção da gravidez é de doze semanas e o procedimento varia de acordo a idade da solicitante. Toda mulher maior de quatorze anos pode solicitar livremente e escolher de forma autônoma o procedimento do aborto. Aquelas menores de quatorze anos devem atuar com autorização de um representante legal, mas em caso de “divergências” com seu representante legal, poderá recorrer ao Juizado de Família para obter seu pronunciamento. Por outro lado, o projeto autoriza “a equipe médica prescindir da autorização do representante legal caso existam antecedentes que, ao solicitar-la, pode vir a expor a menor a riscos de violência intrafamiliar ou de abandono. Neste caso, o profissional médico deverá solicitar ao Tribunal de Família competente a autorização respectiva.”


Para poder interromper a gravidez a mulher deve recorrer um diagnóstico ao médico cirurgião e este deverá ser ratificado por outro profissional que dê fé de seu estado em uma das três causas. Não obstante, o projeto reconhece aos médicos cirurgiões a possibilidade de expressar sua “objeção de consciência”, ou seja, contam com a liberdade de proceder ou não a realização do aborto, informando previamente sua postura por escrito. Fica a critério do corpo médico o dever ético de informar de forma oportuna quando uma paciente se encontra em uma das três causas estipulada no projeto de lei, encaminhando a mulher para um profissional que não tenha tal objeção.


Dentre todas as emendas aprovadas nas comissões de saúde (câmara e senado), que têm como propósitos únicos dificultar o acesso ao abortamento e retirar a autonomia absoluta da mulher, uma delas se denomina como “obrigatoriedade de denúncia” dentro da causante de estupro, com a ratificação da mulher. Esta indicação para o projeto das três causantes é, na verdade, um agente inibidor para a mulher que chega a um centro de saúde para solicitar ajuda. Isso porquê presume-se que o relato de denúncia de gravidez por contexto de estupro possa ser falso e e, portanto, “uma desculpa para conseguir realizar um abortamento”, colocando toda vítima de estupro em constante revitimização e estado de culpabilidade. Apesar do projeto estipular que se “privilegia o dever de confidencialidade sobre o dever de denúncia”, existe o justo temor por parte das mulheres em não procurar assistência médica, por receio a não acreditarem em suas versões e suas denúncias resultarem em sanção por parte dos profissionais de saúde.


A obrigatoriedade da denúncia e a objeção de consciência para a equipe médica, além do prazo que restringe o aborto no caso de menores de 14 anos, devido à exigência de aprovação do Juizado de Família, constituem entraves ao acesso ao aborto. Não apenas o acesso ao direito, mas sem dúvida alguma o acesso de classe, porque são as mulheres e meninas em situação de pobreza que continuam sendo impedidas de optar por um aborto seguro. Na maioria da vezes as menores são estupradas em contexto familiar, sintomatologia do abuso infantil, e por serem ainda crianças costumam não identificar facilmente o estado de gravidez podendo perder-se o prazo de 12 semanas estipulado no projeto para intervenção do abortamento. Estas indicações aprovadas dentro de um projeto de antemão insuficiente, são entraves que perpetuam a violência institucional em relação às mulheres e meninas, onde suas vontades são abertamente negadas, privilegiando as apreciações de uma equipe médica que muitas vezes está representada por setores conservadores da sociedade chilena.


Segundo o Informe anual sobre Derechos Humanos de la Universidad Diego Portales (2013)[i], no Chile se praticam ao menos 70.000 abortos por ano [há entidades feministas que alegam que esta cifra está subestimada, podendo chegar a 130.000 abortos por ano] e uma parte importante deles correspondem a casos de mulheres com baixos recursos econômicos que realizam intervenções clandestinas na maioria dos casos, feitas por pessoas que não têm competência técnica, não contam com a infraestrutura, nem materiais adequados e tampouco se responsabilizam pelas complicações derivadas. O aborto clandestino é responsável por 5,3% das mortes maternas, e entre esses casos, uma taxa de 3% se dá por risco de vida da mãe, inviabilidade fetal e estupro, as denominadas “três causantes” do projeto que acaba de ser aprovado no Senado.


Aos riscos mencionados se soma o de ordem psicológica: a impossibilidade de falar sobre a experiência do aborto leva mulheres a enfrentarem o processo de abortamento na solidão e no abandono, pois recai sobre elas a carga moral e o peso punitivista. Apesar de todos os riscos, as mulheres se submetem a tais procedimentos, mesmo sendo considerado um delito, mesmo podendo ser denunciadas ao buscar socorro em hospitais – em caso de complicações - pelos próprios agentes de saúde.


Todo esse contexto resulta em uma definitiva uma discriminação de dolorosas consequências contra das mulheres chilenas, sem dúvida sobre as mais pobres.


Desafios


Sem dúvida ainda há muito o que ser feito em matéria de direitos sexuais e reprodutivos no Chile. Em primeiro lugar, a discussão destes direitos não deveria orientar-se à realização de concessões aos setores mais conservadores, machistas e religiosos do país, tônica que tem marcado a discussão da lei de aborto das três causantes. A prioridade do debate e as propostas devem estar focadas no respeito à vontade máxima da mulher, tomando em conta sua dignidade, jamais questionando sua possibilidade de decidir ou julgando sua liberdade sexual.


A falta de urgência neste debate legislativo por iniciativa da Nueva Mayoría (coalizão base do governo) desvelou o desinteresse do governo em priorizar e sanar a grande dívida em torno ao Direitos Sociais e Humanos mínimos que foram retirados das mulheres pela ditadura civil militar no ano de 1973 - e que a chamada esquerda institucional jamais teve o compromisso de resgatar. Neste sentido, fica também em evidência como Michelle Bachelet, em que pese haver presidido o Conselho da ONU Mulheres, não tem demonstrado uma postura coerente com a luta pelos direitos das mulheres no Chile, razões de sobra para estimar que seu governo não representa nenhuma ameaça real às estruturas patriarcais cimentadas no país.


Diante do que foi a vergonhosa demora para colocar a discussão sem entraves sobre a mesa, as mulheres em situação de maior vulnerabilidade certamente seguirão sendo empurradas a buscar métodos inseguros e clandestinos, e em caso de complicações, sofrendo em virtude do medo de ser denunciada por agentes de saúde ao buscar um centro hospitalar. E, quando o temor pela penalização for mais forte que a necessidade de buscar ajuda, poderá significar graves consequências para sua saúde ou inclusive a morte.


Assim sendo, o aborto deve ser tratado como um assunto de saúde pública, não centralizado em uma ordem moral ou filosófica, em que o discurso da família tradicional nuclear – tendo como centro a maternidade compulsória – impera. Os movimentos feministas no Chile têm lutado e trabalhado duro para sensibilizar a sociedade chilena, levantando a discussão desta temática ao plano político, desvinculando-a dos argumentos cheios de sentimentalismos e moralismos, como os que se referem ao aborto como “assassinato de bebês indefesos”. O objetivo é que o aborto seja tratado como um direito das mulheres donas de seus próprios corpos, visto que pesquisas recentes[ii] indicam que todo o mal estar e o punitivismo que se gera em torno do aborto vem dos mitos e da carga moral que se deposita sobre um procedimento que deve ser encarado como um direito de autonomia.


Hoje se despenalizou o aborto em três causas no Chile com um projeto que se tornará lei, porém limitada e insuficiente por resguardar a criminalização e a vulneração das mulheres e seus direitos.. Entretanto, é sem dúvida um avanço dada a situação atual do Chile, e, vale lembrar, isso é uma vitória da luta dos diversos movimentos feministas. É primordial conseguir uma lei de aborto sem restrições, que garanta a segurança e a gratuidade, mas principalmente, uma vida digna para todas as mulheres que vivem no Chile.



Sabrina Aquino é feminista marxista, fotógrafa, formada em história, encarregada política de Nueva Democrácia de Valparaíso-Chile.


[i] Informe anual sobre Derechos Humanos de la Universidad Diego Portales (2013).


[ii] ZUNIGA ANAZCO, Yanira. UNA PROPUESTA DE ANÁLISIS Y REGULACIÓN DEL ABORTO EN CHILE DESDE EL PENSAMIENTO FEMINISTA. Ius et Praxis, Talca , v. 19, n. 1, p. 255-300, 2013 . Disponible en <>. Acesso em 14 jul. 2017.

コメント


Comentários

leia também:

bottom of page