“Ela vai engravidar: demite”
- Bruna Leão
- 13 de mai. de 2018
- 9 min de leitura
Esse conselho (comum) dado por uma palestrante no evento Women Will, do Google, é um ponto de partida para falarmos sobre licença-maternidade e discriminação.

Um auditório lotado de mulheres animadas para começar o programa de capacitação oferecido gratuitamente pelo Google, o Women Will. As palestrantes são todas também mulheres. Após angariar sucesso em suas respectivas áreas, elas dão dicas de desenvolvimento pessoal e profissional.
Veja bem, eu sei que pelo título você pode perceber que coisa boa não vem por aí. Mas não posso dizer que o evento tenha sido ruim, é uma iniciativa muito interessante. O workshop oferece ferramentas práticas para que mulheres desenvolvam habilidades que lhes permitem melhorar seu próprio negócio, conseguir um outro emprego ou crescer enquanto profissional no local onde atua. Além disso, um ambiente repleto de profissionais dos mais diversos tipos, oferece uma oportunidade muito legal de troca de informações e experiências, o famoso networking.
E, assim, rodeada de mulheres - designers, revendedoras de cosméticos, mulheres donas de seu pequeno negócio de bolos, pizzaria e até colchões - eu também estava animada com a experiência.
No entanto, não posso deixar de expressar minha revolta - compartilhada entre muitas outras participantes do evento - com uma situação em particular que ocorreu no segundo e último dia do ciclo de palestras. E vou contar essa história aqui, pois acredito que esse acontecimento permite que possamos fazer algumas considerações muito necessárias sobre mulheres no mercado de trabalho. Afinal, temos essa plataforma disponível para isso.
Então, comecemos pela fatídica palestra.
A palestra na qual me refiro, se chama “Melhorando sua relação com o dinheiro”. A palestrante se chama a Patrícia Lages, que apenas tive conhecimento de quem era nesse dia e, infelizmente, me deixou a pior das impressões.
Então, para quem não a conhece, Patrícia Lages é “jornalista, escritora, blogueira, colunista

de TV e rádio e palestrante”, conforme define no seu site Bolsa Blindada, onde dá dicas de economia pessoal para mulheres. Ela também é autora dos livros “Bolsa Blindada”, “Bolsa Blindada 2” e, o mais recente, “Virada Financeira”. Todos best-sellers.
O foco da palestra era, então, dar dicas de finanças para mulheres. O que eu acho ótimo e estava aguardando essa palestra em especial.
Em determinado momento, Patrícia fala sobre a necessidade de tomarmos decisões racionais sobre finanças e deixar o emocional de lado. Para ilustrar essa ideia, ela dá o exemplo de uma amiga que lhe procurou ajuda.
A amiga era uma empreendedora e tinha duas funcionárias, uma das quais havia casado recentemente. No exemplo, Patrícia disse que teve que dar um conselho que doeu muito a ela própria, mas que era necessário: demite. A funcionária logo engravidaria e isso significava o terror dos empreendedores: ter que conceder um direito trabalhista conquistado pelas mulheres, a tenebrosa licença-maternidade.
A mera possibilidade de ser mãe já levanta uma bandeira vermelha aos olhos dos empregadores. Segundo pesquisa divulgada pelo jornal britânico The Guardian, um terço dos administradores entrevistados preferem empregar um homem na faixa dos 20 ou 30 anos do que uma mulher da mesma idade por medo da licença-maternidade.
A coisa não melhora se você já for mãe, já que um número similar de entrevistados, 44%, também admitiu que teriam receios de contratar uma mulher que já tenha filhos.
Ou seja: mesmo você não sendo mãe, mesmo que nem venha a ser, somente o fato de você estar em idade reprodutiva já te faz sentir os efeitos do “castigo da maternidade” (motherhood penalty).
Lembrando que no Reino Unido, onde essa pesquisa foi feita, o pagamento dos salários durante o período da licença-maternidade é dividida entre o empregador e o governo.
Aliás, esse foi um dos argumentos que a palestrante utilizou para se “justificar”, dado o desconforto gerado na plateia. No Brasil, ao contrário de países europeus que adoramos citar quando falamos de licença-maternidade, esse benefício é pago exclusivamente pelo empregador, segundo ela. Assim, reafirmou a injustiça de trabalhadoras serem pagas “sem estarem produzindo”.
Por essa mesma lógica, seria injusto também aos empregadores o pagamento de férias remuneradas. Dessa forma, mantendo a coerência em uma argumentação que já começou ruim, Patrícia defendeu a legislação americana, no qual os trabalhadores têm 10 dias de férias e sem direito à remuneração. E depois fez uma saudação aos Estados Unidos ao estilo “é por isso que lá tudo dá certo”.
Vou dar uma pausa aqui para vocês absorverem essa informação.
Pronto?
Agora, aos fatos.
No Brasil, quem paga os salários durante o período da licença-maternidade é o governo.
Bem, vou explicar. Ou melhor, vou deixar que o advogado Gustavo Esquive, explique:
“Para empregadas registradas (celetistas), a empresa paga o valor integral do salário e o INSS faz o reembolso. No final, a conta fica a cargo do INSS, ainda que a empresa faça a antecipação destes valores”, disse.
Tá. Mas, na prática, como funciona esse reembolso?
“Normalmente as empresas abatem o valor dos recolhimentos previdenciários que tem que ser feitos dos outros empregados. Dessa forma, o abatimento já se dá nos meses subsequentes ao pagamento do salário maternidade”. Ainda que essa seja a prática comumente adotada pelas empresas, a lei também permite o reembolso ao invés do abatimento, segundo informou Esquive, “já que a Receita costuma demorar muito para reembolsar valores”.
A licença-paternidade, por sua vez, é de apenas 5 dias no Brasil. A lei amplia o benefício para 20 dias, “mas só para as empresas que participam do programa Empresa Cidadã”, diz o advogado. “Este programa é o mesmo que estende a licença maternidade para seis meses. A empresa que participa tem algumas isenções tributárias para concessão desses prazos maiores”.
O Jornal Nexo ainda facilitou o comparativo entre o Brasil e outros países no gráfico abaixo. Os dados são do Banco Mundial:

*Valor da remuneração varia em cada país. No caso das licenças maternidade, a remuneração é quase sempre integral **Meses foram arredondados para 30 dias ***Período extendido para empresas que aderirem ao programa Empresa Cidadã
É claro que esse tipo de argumentação por parte de empreendedores não me surpreende. Mas me revolta. Principalmente em um workshop voltado exclusivamente à mulheres.
Ora, uma pessoa que vai dar uma palestra sobre planejamento financeiro deveria estar dando dicas de como você pode de fato... planejar suas finanças. E obviamente que o planejamento financeiro deve levar em consideração alguns acontecimentos, como uma funcionária ter que sair de licença-maternidade, um funcionário ter que se ausentar por motivo de doença, eventual pagamento de uma despesa por acidente de trabalho ou até mesmo despesas legais caso a empresa seja processada na justiça do trabalho.
O que não podemos admitir é que mulheres sejam punidas, - sim, punidas! - por quererem exercer a maternidade e termos empregadores lhes fechando as portas no momento que mais precisam de estabilidade financeira.
É uma lógica cruel que impera na sociedade. Ao mesmo que tempo que se considera que ser mãe é uma “bênção”, um destino “natural” para toda mulher, quando de fato mulheres se tornam mães nos deparamos com uma total falta de acolhimento. Se as mulheres deixam de trabalhar fora para se dedicar inteiramente aos cuidados domésticos, exercem um trabalho não remunerado e desvalorizado. Caso queiram voltar ao mercado de trabalho após esse período, encontram dificuldades nas contratações. Se não desejam ou não podem deixar de trabalhar fora, enfrentam um ambiente hostil, desde julgamentos por não deixarem de trabalhar (que mãe nunca ouviu um "seu filho vai ficar com quem?") até demissões - como as aconselhadas pela Patrícia Lage -, disparidades salariais, dentre outras formas de discriminação.
Um novo estudo, da Universidade de Michigan demonstra que embora algumas mulheres tenham as mesmas condições de estudos, cargos e experiências, mulheres que são mães ganham cerca de 15% a menos do que as que não são. Mulheres com 2 ou mais filhos chegam a receber até 20% a menos.
Pesquisas demonstram que, ao mencionarem que a pessoa em análise é uma mãe, avaliadores a qualificam como menos competente. Da mesma forma, estudos também demonstram que quando uma mulher está visivelmente grávida, são julgadas como menos comprometidas com o trabalho, mais emocional e irracional.
Mas o que acontece quando as mães comprovam definitivamente sua competência e comprometimento com o trabalho? Segundo a pesquisa “Normative Discrimination and the Mothehood Penalty” (Discriminação Normativa e o Castigo da Maternidade, em tradução livre), ainda assim elas são avaliadas como menos “calorosas, menos simpáticas e mais hostis interpessoalmente do que trabalhadoras similares que não são mães”.
Os homens quando se tornam pais, ao contrário, não são penalizados e muitas vezes até se beneficiam com isso, por exemplo, com promoções e maiores salários. Se, por um lado o termo sociológico utilizado para descrever as dificuldades da maternidade é o "motherhood penalty", o termo utilizado para definir as benesses da paternidade é o "fatherhood premium".
Portanto, nós temos que acabar com essa “lógica” difundida pelo empresariado - respaldada pela Patrícia Lage -, de que decisões empresariais são tomadas levando em consideração motivações puramente racionais. Como se a empresa vivesse numa bolha, onde as pessoas que lá atuam não fossem também imbuídas dos preconceitos existentes no restante da sociedade. Entre eles, o machismo.
Por fim, gostaria de lembrar que a tal “dica” proferida no evento, justamente por ser discriminatória, é também ilegal. Segundo o advogado Gustavo Esquive, caso “a empregada prove a dispensa discriminatória por conta de uma eventual gravidez, ela poderia inclusive pleitear uma indenização por danos morais”.
Se a trabalhadora já estiver grávida no período da dispensa, “além dos danos morais o [ela teria direito ao] reembolso do período de estabilidade”, disse.
No caso específico de ser demitida antes mesmo de engravidar, o advogado diz que “seria uma prova muito difícil de se fazer, mas se alguém testemunhasse neste sentido, de que o desligamento se deu por conta do casamento e uma possível gravidez, eu entendo que seria perfeitamente cabível, afinal o patrão está fazendo uma discriminação por conta do sexo, o que é expressamente vedado pela Constituição”.
Este artigo foi editado no dia 14 de maio de 2018, para incluir o posicionamento da RME – Rede Mulher Empreendedora e Google – WomenWill, a qual copiamos integralmente abaixo:
Sobre o texto publicado no domingo com o título "Ela vai engravidar: demite", a respeito do comentário feito por uma palestrante durante o programa WomenWill, gostaríamos de fazer alguns esclarecimentos:O programa tem foco no empoderamento econômico das mulheres por meio do emprego ou do empreendedorismo, trabalhando competências como liderança, negociação, vendas, educação financeira e uso de ferramentas digitais.
Todas as nossas facilitadoras são selecionadas criteriosamente, levando em conta seu conhecimento e relevância em cada tema;
Na palestra citada pelo artigo, feita no dia 25 de abril em São Paulo, para uma plateia de 95 mulheres, Patricia Lages afirmou que qualquer empreendimento precisa levar em conta, em seu planejamento financeiro, custos diversos, incluindo entre eles os gerados pela licença-maternidade, esse comentário de Patrícia Lages gerou algum desconforto e foi debatido pela plateia, sendo que a nós pareceu que sua posição ficou esclarecida, já que não suscitou qualquer outra manifestação no momento;
Os exemplos dados por Patricia Lages e citados no artigo são de sua inteira responsabilidade, não representando o que pensam os organizadores ou realizadores do programa WomenWill.
Estamos à disposição para quaisquer outros esclarecimentos, com a certeza de que temos de prosseguir na luta pela igualdade de direitos das mulheres em várias frentes e em todo o mundo.
Rede Mulher EmpreendedoraWomenWill – Google
Este artigo foi editado no dia 17 de maio de 2018, para incluir o posicionamento da Patrícia Lages, a qual copiamos integralmente abaixo:
Venho apresentar minhas sinceras desculpas pela péssima abordagem a um assunto tão sensível e importante dentro de todas as conquistas da mulher. Meu posicionamento não é demitir e nem aconselhar a demitir, mas sim, levar a empreendedora a ter consciência de que, se não tiver uma reserva financeira para arcar com uma possível licença, pode ter sérios problemas caso uma funcionária engravide.
Não são poucas as empresas que fecham por recorrerem a empréstimos para arcar com essa despesa e, depois, colocam a culpa da falência em um direito adquirido com muita luta, quando, na verdade, o problema é a má gestão e a falta de planejamento financeiro, temas da minha palestra no WomenWill. No caso específico citado na palestra, havia várias outras questões que não expliquei, mas o problema foi não ter me desculpado pela péssima colocação, creio que a pior de toda a minha carreira. Reitero que meu posicionamento não é demitir mulheres, sejam mães ou não, pretendam ser ou não, mas a forma como coloquei o assunto fez parecer que sim e eu não tive sensibilidade para perceber o quanto foi ruim.
Diante disso, fica aqui registrado o meu pedido de desculpas às 95 mulheres presentes no evento e a todas as demais que tenham se sentido ofendidas pela colocação. Estamos trabalhando para levar independência financeira à mulher, acreditando que o dinheiro nos traz opções: opção de não permanecer em um relacionamento abusivo por dependência financeira, opção de não ter de aguentar um emprego qualquer só para se manter, opção de dar o melhor para si e as pessoas que a cercam.
Nosso trabalho vem sendo realizado com seriedade e comprometimento e, a partir de agora, com muito mais cuidado para que, no afã de resolver problemas, não venhamos fazer parte dele. Agradeço a você que leu até aqui e conto com sua compreensão e aceite das minhas sinceras desculpas
Comments