As Marias do Patriarcado
- Micaelly Priscila Lima e Kaliani Rocha
- 21 de jul. de 2017
- 31 min de leitura
Apropriações, explorações e resistências das trabalhadoras
domésticas do sertão pernambucano
Resumo: as evidentes desigualdades entre homens e mulheres que operam na nossa sociedade vem do ideário naturalista que, por muito tempo, impôs à mulher determinadas funções em decorrência da sua condição físico-biológica, assim como ao homem. As atribuições a cada um dos sexos, em suas particularidades, construíram um sistema sociocultural hierárquico, denominado Patriarcado, por meio do qual as mulheres acabam sendo oprimidas. O âmbito do trabalho aparece como um dos dispositivos de reprodução desse sistema, ao passo que direciona as mulheres a desempenharem determinadas funções e os homens outras, sendo as primeiras comumente as realizadas na esfera privada e as tidas como masculinas na esfera pública, o que gera valorações distintas entre elas. O serviço doméstico –remunerado e não-remunerado - majoritariamente realizado por mulheres é um campo propício à investigação das questões de exploração feminina. Sendo assim, para elaboração do presente artigo, foram realizadas entrevistas com sete trabalhadoras domésticas residentes na cidade de Serra Talhada – PE, utilizando-se de roteiros semiestruturados, diário de campo e interpretação dos dados por meio da análise de conteúdo. As entrevistas mostraram que de fato o trabalho doméstico explora e apropria-se dessas mulheres, entretanto os relatos mostram que as trabalhadoras desenvolvem, em diferentes níveis, estratégias de resistências às imposições.

"Nanny Holding a Baby" (1911) - Lee Greene Richards
Problematizando e fundamentando o objeto: o patriarcado e a dominação sobre as mulheres
Em meio à sociedade em que vivemos, podemos perceber que existe significativa desigualdade entre homens e mulheres; desigualdade esta que, ao longo da história, foi-se construindo tendo por base significações culturais e sociais de atribuições masculinas e femininas (SCOTT, 1989). Os estudos sobre gênero surgem como uma investida para compreensão de tais diferenças e a partir daí levanta-se as primeiras explicações: a desigualdade é justificada com base em aspectos biológicos que determinam as aptidões socioculturais de cada sexo. Desse modo, a explicação para que a mulher assuma funções e tarefas no âmbito doméstico decorre, por exemplo, do fato de engravidarem e amamentarem, tarefas que exigem dela mais tempo em casa e perto dos filhos e implicam em menor participação nos espaços públicos. Enquanto os homens ficam encarregados das tarefas que incluem a vida comunitária e a ação política, assim como daqueles trabalhos que geram riquezas. Entretanto, sabemos que a biologia não é de fato determinante, mas sim as leituras culturais que se fazem sobre o que é ser homem e mulher (ALBERNAZ; LONGHI, 2009).
É de extrema importância às discussões acerca do trabalho incluirem o debate sobre as questões de gênero, uma vez que este costuma ser um dispositivo que põe em cheque as desigualdades entre homens e mulheres, já que há, socialmente, a tendência de separação entre o trabalho produtivo (esfera pública) como masculino e o trabalho reprodutivo (espaço privado) como feminino. Tal separação acaba acarretando consequências como: diferença salarial, diferentes condições de trabalho ou mesmo valoração distinta ao emprego que as pessoas de cada sexo ocupam.
O trabalho no espaço doméstico - seja ele remunerado ou não – é o tipo de atividade que realça a desigualdade entre os gêneros e naturaliza a discriminação que opera sobre as mulheres que atuam nesse tipo de atividade. Dados do IBGE (2011) mostram que atualmente o perfil da pessoa que se ocupa do trabalho doméstico remunerado, por exemplo, é: mulher (em 92,6% dos casos), negra (representando 61,0% delas), com idade entre 40 e 49 anos e, na maioria das vezes (em 48,9% delas), possuem escolaridade até o Ensino Fundamental incompleto. Não obstante, e ironicamente, é a ocupação que apresenta menor rendimento médio mensal (R$ 509,00) quando comparada a outros grupos de atividades. Além disso, e apesar de as mulheres serem maioria no setor de serviços, as desigualdades salariais entre os sexos/gêneros fazem com que o rendimento médio salarial dos homens, em 2011, fosse de R$718,00 e o das mulheres R$493,00 – nota-se também a inferioridade deste último valor em comparação ao salário mínimo vigente na época, que era de R$545,00.
A nossa sociedade opera de um modo em que culturalmente a mulher é direcionada à execução do trabalho doméstico, fazendo deste um fato natural. Esse preconceito faz com que as vidas das mulheres sejam apropriadas em diversas dimensões, quais sejam: subjetiva, física e emocional. Nos exemplos aqui relatados, temos mulheres que, por estarem à margem da sociedade, assumem um trabalho que acentua tal apropriação e muitas vezes as deixam convencidas de que não há outras opções, já que é quase unânime entre as entrevistadas relatos de que trabalham por obrigação, porque necessitam e que, por não terem estudado, esse é o único trabalho que podem e merecem ter, mesmo que ele seja cansativo e mal remunerado.
Essa realidade está pautada no que chamamos de patriarcado, que pode ser entendido como “regime de estruturas e práticas sociais no qual os homens dominam, oprimem e exploram as mulheres” (WALBY, 1997 apud ÁVILA, 2009, p. 90). Sobre esse regime, Christine Delphy (2004) diz que, na interpretação dada pelas feministas, o patriarcado representa uma formação social na qual quem detém o poder é o homem. Essa configuração mantém a hegemonia masculina na vida social e converge para que as mulheres se mantenham na esfera privada e fiquem por conta das demandas domésticas - ainda que trabalhem fora de casa. É nessa lógica que o sistema capitalista contribui para manter o formato de relação hierarquizada que explora/domina as mulheres, uma vez que, assim como afirma Heleieth Saffioti (1969), à medida que o capitalismo ascende, cresce o número de mulheres no mercado de trabalho, entretanto essa inserção não é igualitária, já que elas foram tardiamente inseridas neste meio. Ainda segundo essa autora, os setores onde estão as mulheres são, normalmente, os mais precários do sistema e com menor remuneração. Um desses setores que ela aponta é o de serviços – no qual está incluso o trabalho doméstico.
Assim, de acordo com Mirla Cisne (2013)
Quando utilizamos patriarcado, necessariamente estamos nos referindo às relações de dominação, opressão e exploração masculinas na apropriação sobre o corpo, a vida e o trabalho das mulheres. Ou seja, o patriarcado nomeia as desigualdades que marcam as relações sociais de sexo em vigor na sociedade (CISNE, 2013, p. 16).
Assumindo que ideologias se sustentam em bases materiais, podemos entender o modo como o patriarcado opera na formação das relações sociais de sexo, assim como dito por Colette Guillaumin (2005) ao assegurar que a relação de poder é um fato material que compõe a apropriação das mulheres por parte dos homens. Sobre essa questão Mirla Cisne (2013) afirma que, se é fato a relação entre a ideologia e a materialidade, então é fato também que a opressão e a subordinação feminina apoiam-se no material que diz respeito à exploração e apropriação das mulheres. Nesse sentido, Christine Delphy (2009) atenta que é primordial e necessário que haja, na busca por explicar a opressão, viés feminista e/ou proletário.
Posto isso, e trazendo o debate para os casos das trabalhadoras entrevistadas, nota-se que, mesmo em diferentes níveis as relações de dominação, exploração e opressão citadas acima fazem parte do dia-a-dia dessas mulheres. Desse modo, pode-se observar que a maioria acaba operando conforme a hierarquização ditada por esse regime e outras têm resistido a esta prescrição, sendo estas últimas as que procuram dividir as atividades domésticas. Foi ao se referir a estas últimas que Mirla Cisne (2013) falou que há mulheres que “resistiram e resistem, lutando contra esse sistema de exploração e opressão, contrariando, portanto, a naturalização da subordinação feminina” (CISNE, 2013, p. 32).
Sendo assim, a presente pesquisa procurou investigar como as questões de gênero atravessam o âmbito do trabalho doméstico, por meio de uma perspectiva feminista materialista. O estudo concentra-se em examinar como as trabalhadoras domésticas reagem à exploração e opressão típicas neste tipo de trabalho, levando em consideração a consciência que têm do lugar que ocupam na sociedade patriarcal.
Para tanto a apuração dos dados foi realizada em uma cidade do interior de Pernambuco, localizada a 410 km de Recife. De acordo com levantamento bibliográfico feito, é possível notar como estudos referentes a esse tema ainda estão restritos a determinados espaços e centros urbanos e, consequentemente, tornam-se escassos na região do sertão do Pajeú, por exemplo. Conforme pesquisas realizadas, foi possível notar que há algumas mobilizações de mulheres serra-talhadenses, sobretudo no campo do trabalho rural (como o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais no Sertão Central) mas, assim como reitera uma das entrevistadas quando diz “as pessoas daqui estão muito acostumadas com a realidade da cidade, né? Aqui é assim: ou você trabalha por esse preço ou você passa fome porque não vai ter outro”, ainda é difícil encontrar força em organizações trabalhistas (sindicatos) e/ou feministas para melhoria do cenário de Serra Talhada no que diz respeito ao trabalho doméstico.
Metodologia
Para chegar aos resultados aqui obtidos foram realizadas entrevistas com sete trabalhadoras domésticas residentes na cidade de Serra Talhada – PE. Para tal, foram utilizados roteiros semiestruturados; as entrevistas foram realizadas individualmente e gravadas para a posterior apreciação utilizando-se a análise de conteúdo; também foi usado o recurso do diário de campo, onde foram escritas as impressões e relatos acerca da experiência no campo. Foi delimitado que as trabalhadoras a serem entrevistadas não possuíssem nenhuma vinculação com sindicatos ou organizações feministas, bem como fossem moradoras da cidade de Serra Talhada; não houve delimitação quanto ao tempo de atuação no serviço doméstico remunerado nem sobre estarem trabalhando atualmente; quanto ao vínculo empregatício não era exigido que tivessem carteira de trabalho assinada, mas que não fossem diaristas. As questões relativas à raça e escolaridade das mulheres não foram critérios usados para selecionar as entrevistadas por não se tratar do foco da discussão, apesar de tocar em alguns pontos dela. As entrevistas foram realizadas nos lares das participantes, a fim de que estas ficassem o mais confortável possível. Todas elas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Quanto ao perfil das entrevistadas percebe-se que é um tanto homogêneo: estão na faixa etária de 39 a 50 anos, a maioria casada e todas têm filhos. Os nomes aqui citados são fictícios.
O Patriarcado e a Dominação sobre as Empregadas Domésticas no Sertão do Pajeú
De acordo com dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (2013), 6,6 milhões de pessoas trabalham no emprego doméstico, sendo aproximadamente 5,5 milhões de mulheres ocupando essa categoria, que tem por principais atividades os serviços de cozinheira/o, governanta, babá, lavadeira, faxineira/o, vigia, motorista particular, jardineira/o, acompanhante de idosas/os etc (DIEESE, 2013).
O trabalho doméstico é também chamado de “trabalho reprodutivo”, em oposição ao trabalho produtivo – sendo característica deste último a produção de bens ou serviços com valor econômico do mercado. Maíra Saruê Machado (2009) define o trabalho reprodutivo como o responsável “pela manutenção da vida e reprodução das pessoas, ou seja, aquele que envolve um conjunto de atividades realizadas na esfera privada e familiar” (MACHADO, 2009, p. 61), seja de caráter remunerado ou não remunerado, é ele que assegura a reprodução humana e supre as necessidades cotidianas necessárias à sobrevivência.
Devido à característica de intermitência dos serviços domésticos, a questão da intensidade e extensividade das jornadas de trabalho é de fato pertinente, como pode ser visto nos relatos das trabalhadoras aqui entrevistadas, onde é unânime que elas estão ocupadas com os afazeres domésticos dos seus lares e dos que estão empregadas. Em contrapartida, foi possível observar que há um movimento de resistência no qual essas mulheres se apoiam para reduzir as tensões advindas da opressão e exploração que vivem.
Maria da Conceição, entretanto, é uma das mulheres que vive a realidade na qual o trabalho doméstico do seu lar ainda recai para si, bem como para sua filha, como exemplificado quando ela fala sobre os dias de folga, nos quais ela fica “em casa cuidando também. Lavando roupa, arrumando a casa, dando uma geral... essas coisas” e sobre os dias que vai trabalhar ela diz: “de manhã eu faço a comida e Camila faz o restante. Deixo o almoço pronto e quando dá tempo eu ainda faço alguma coisa, deixo minha cama forrada, a cozinha arrumada”. Ela continua falando e explica que o filho e o marido não participam: “só é nós duas mesmo. Porque os outros não fazem. Renato e Antônio, eles não fazem nada. Às vezes enchem uma garrafa, mas é difícil. E assim, Antônio não lava um prato!”.
Esse trecho da entrevista nos dá sinais de como acontece a divisão das tarefas entre homens e mulheres e é interessante ressaltar como Maria da Conceição fala que são elas que fazem porque não tem outras pessoas que possam fazer, sem cogitar a possibilidade de os homens realizarem essas funções. Ainda com base na fala dessa trabalhadora, pode-se dizer que sua jornada de trabalho é caracterizada como uma jornada extensa, intensa e intermitente - assim como a da maioria das entrevistadas. Esse é o ritmo de trabalho presente na atividade doméstica pelo seu caráter ininterrupto, uma vez que é ele que “supre necessidades cotidianas da sobrevivência das pessoas e da reprodução da vida humana” (CARRASCO, 2001 apud ÁVILA, 2009, p.287).
A história é a mesma na família de Maria das Graças: ela é responsável, junto com a sua filha, pelos afazeres domésticos. Os dois filhos e o ex-marido não contribuem com tais afazeres; em suas palavras, a justificativa é “porque ele [o ex-marido] dizia que trabalhava fora também, que tava cansado e o menino é porque dizia que não fazia mesmo... não falava nada, mas também não fazia”.
O exemplo de Maria Aparecida é muito semelhante: ela faz o serviço da sua casa dividindo-o com sua filha. Já o marido não contribui por considerar que “é serviço de mulher. É o que ele diz”. Maria Auxiliadora, por sua vez, também fala sobre esse assunto de modo parecido: ela diz que quem faz o serviço da sua casa é ela “porque não tem outra, só tem dois meninos e um marido” e “porque infelizmente não tem quem cuide, quem cozinhe”.
Podemos entender o caso dessas três mulheres à luz do que diz Danièle Kergoat a respeito da Divisão Sexual do Trabalho. Segundo essa autora, as relações sociais possuem uma base material e, no caso das relações sociais de sexo, essa base é o trabalho que socialmente é dividido entre homens e mulheres. A perspectiva de que a Divisão Sexual do Trabalho alimenta a relação de poder dos homens sobre as mulheres foi trazida por antropólogas feministas, em detrimento à noção já existente utilizada por etnólogos para indicar uma complementariedade de tarefas entre os sexos (KERGOAT, 2000).
Pode-se, então, definir a Divisão Sexual do Trabalho como sendo
A forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; esta forma é adaptada historicamente e a cada sociedade. Ela tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apreensão pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares, etc) (KERGOAT, 2000, p. 01).
Analisando os casos expostos anteriormente, percebemos como as relações entre as mulheres e os seus maridos estão arraigadas nessa divisão sexual do trabalho que, baseando-se nas relações sociais estabelecidas, ditam o que cabe a cada sexo: a mulher e as filhas fazem o serviço doméstico, enquanto os maridos e os filhos não se dedicam a esta atividade e, no caso do marido, usam o trabalho na esfera pública como justificativa mesmo quando a mulher também trabalha fora de casa. Esses fatos estão relacionados com o que Kergoat (2000) chamou de princípios organizadores da Divisão Sexual do Trabalho: o princípio da separação (que divide trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio da hierarquização (que diz haver mais valorização do trabalho do homem em relação ao trabalho da mulher). Esses princípios existem em decorrência da ideologia naturalista, que reduz as práticas sociais ao sexo biológico; entretanto, é essa lógica que a análise com base na Divisão Sexual do Trabalho pretende romper, ao dizer que as práticas sexuadas são construídas socialmente.
É importante ressaltar que a Divisão Sexual do Trabalho não tem caráter rígido e imutável, já que é baseada em construções sociais que podem ser moduladas historicamente (Kergoat, 2001). Tendo isso em vista, observa-se que há alguns relatos que, mesmo sutilmente, quebram com a lógica citada acima e indicam um movimento de mudança dessa realidade. Esse movimento, apesar de ainda partir da minoria entrevistada, demonstra uma busca por alternativas por parte dessas mulheres, como é o caso de Maria de Lourdes:
Às vezes eu tenho ajuda do meu esposo [...] a gente dividiu as tarefas assim, como nós dois trabalhamos fora, a gente dividiu a tarefa de casa assim: ele lava o banheiro, o quintal e o fogão e eu faço o restante das coisas: lavo louça, lavo roupa e arrumo a casa. Quando dá tempo durante a semana, quando não dá a gente faz, nós dois nos sábados (Maria de Lourdes).
Discurso semelhante tem Maria de Fátima quando diz “meu sobrinho mora comigo, aí pronto, de vez em quando nós bota ele pra lavar prato. Vai ajudar!”
Maria do Socorro também fala em uma divisão das tarefas entre seus filhos independentemente do sexo:
Meu filho fazia a comida e ela [a filha] fazia a limpeza da casa. [...] então, se for limpar a casa e eles forem me ajudar... já teve assim, dia de faxina eles me ajudam... vai lavar as coisas do armário, um vai limpar o sofá, tirar o pó... eles ajudam nisso. Os três me ajudam. Mas aí quando eles vão fazer isso é todo mundo junto (Maria do Socorro).
O trabalho doméstico, como sendo “trabalho das mulheres”, é ainda um elemento de sustentação da Divisão Sexual de Trabalho e, portanto, embora seja uma postura louvável a dessas mulheres que dividem as atividades domésticas dos seus lares, percebe-se que todas usam o termo “ajuda” para definir a contribuição de outras pessoas. Esse fato demonstra como está enraizado o princípio da separação nas relações sociais, dando, nesse caso, a impressão que são as mulheres as protagonistas e principais responsáveis pelos afazeres domésticos mesmo que haja divisão das atividades com os homens. Logo, é sensato dizer que a divisão sexual do trabalho é uma das bases estruturantes da exploração e da opressão da mulher.
Além disso, aparentemente é mais difícil propagar essa ideia de divisão de tarefas com outras pessoas, que não os filhos, o que é visto quando Maria do Socorro diz: “os meus irmãos nenhum faz isso [atividades domésticas]. Nenhum deles faz, nem o meu ex-marido fazia. Eu chegava e ele ficava com fome e ele não comia enquanto eu não chegasse e colocasse a comida dele”. Ao que parece, o lugar do marido é tido como propício para reafirmar o patriarcado, uma vez que as mulheres os trazem nas suas falas, via de regra, como sendo a principal figura que se abstém de participar das atividades domésticas. Podemos nos indagar sobre esse fato tendo em mente a forma como se dá a construção sociocultural da figura do marido/pai na nossa sociedade, mais especificamente na família de modelo patriarcal. Se, de acordo com Christine Delphy (2009, p.174) “‘patriarcado’ vem da combinação das palavras gregas pater (pai) e arke (origem e comando)”, então o patriarcado é, de modo literal, a autoridade do pai. Nesse caso, a família se constitui uma chave primordial para entendermos a exploração histórica das mulheres, bem como a opressão. No contexto dessas mulheres entrevistadas acontece que o pai, estando nesse lugar de comando, parece fazer com que seja bastante improvável que se submeta às atividades domésticas, sobretudo sendo elas atividades tidas como femininas.
Algumas das participantes trazem no discurso indignações quanto a esse modelo de relações entre homens e mulheres no âmbito doméstico, mas ainda parece difícil sair do campo da ideia para o da prática. Em outras palavras: por mais que algumas delas reconheçam que não está certo que as coisas aconteçam assim, a maioria continua reproduzindo esse modelo, pois provavelmente existem variáveis que lhes tiram o ímpeto de se recusar a fazer o trabalho doméstico não remunerado.
Ademais ao que foi exposto até aqui, o conteúdo obtido por meio das entrevistas torna razoável estabelecer uma relação entre divisão de atividades domésticas e sensibilização das temáticas feministas. A grosso modo, aquelas mulheres que continuam com jornada extensiva, intensiva e intermitente são as que afirmam nunca ter ouvido falar em feminismo e afins e, de modo contrário, aquelas que dividem o trabalho com os filhos e o sobrinho têm um conhecimento, mesmo que superficial, do tema. Fugindo a essa regra está Maria da Penha que apesar de ter dito não fazer ideia do que é feminismo e em outro momento falar que o trabalho doméstico “ficou para a mulher”, divide as atividades do lar com o seu marido. Sendo assim, podemos entender que há nuances nessa relação: como dito, existem aquelas que mantêm um abismo entre discurso e prática, existem as que realmente não têm consciência de que é possível (e preciso) que haja essa divisão e existem aquelas que sabem que não são únicas responsáveis por essas demandas e, por isso, procura dividi-las.
A apropriação do tempo no trabalho doméstico remunerado
A apropriação do tempo e da força de trabalho das entrevistadas é notória quando algumas afirmam que o horário de trabalho é até “a hora que tiver serviço” e outras falam de jornadas de trabalho que ultrapassam às oito horas diárias, estendendo o horário até as 19h ou 20h. A indefinição das suas funções também é um aspecto que deve ser observado nesse sentido de apropriação, pois são muitos os casos em que elas são contratadas para realizar determinada função mas acabam exercendo tarefas que vão além do que foi previamente combinado. Maria da Conceição, por exemplo, diz que foi contratada para limpar a casa, mas “depois ela foi pedindo para fazer o almoço, aí...” e atualmente “às vezes eu faço o café da manhã”. Maria das Graças, por sua vez, reclamou da demanda de trabalho na casa em que estava empregada: ela diz que viajava com a família dos patrões e “ainda dormia quando ela ia para uma festa, um casamento [...] tudo para ganhar um salário”. É importante observar como essas trabalhadoras sentem o impacto do seu emprego nas suas vidas e qual a leitura que elas fazem dessas situações de apropriação. Maria das Graças, por exemplo, diz:
Você não tinha tempo pra nada, pra resolver nada. Não tinha. Até se quisesse comprar uma roupa não tinha como. No sábado eu saía duas da tarde, o comércio já tinha fechado [...] ah, eu sentia desgosto de não tá na minha casa, de não poder cuidar da minha casa, dos meus filhos. Ainda hoje sinto, né? Eu gosto de ficar em casa cuidando dos meus filhos e da minha casa e ter que ir cuidar da casa dos outros, dos filhos dos outros, como muitas vezes eu ia e deixava minha casa o dia todinho quando chegava de noite ia fazer as coisas com desgosto de tá cuidando da casa dos outros e a minha tá lá né, com as coisas pra fazer. Eu ia com desgosto, com aquela coisa ruim (Maria das Graças).
Essas falas põe em questão o quanto esta e outras mulheres, enquanto empregadas domésticas, precisam abdicar dos seus próprios interesses, a fim de se doar ao outro, visto o caráter de servidão do seu emprego e a exploração presente nessa relação empregada-patrões. Já Maria Auxiliadora encara coisas como essa de um outro modo: ela parece se orgulhar do fato da sua patroa lhe solicitar em horário extra pois lhe parece um sinal de confiança e reconhecimento, já que quando questionei se o seu trabalho era valorizado ela me disse que sim e deu como exemplo a ocasião em que a sua patroa “estava no Recife e ligava ‘Maria, chegou mercadoria, vai lá receber’. Eu ia lá receber mesmo sem tá no expediente de trabalho, mas sempre ia receber”. Maria diz também que “às vezes ela pedia pra eu ir trabalhar no sábado” e não demonstra inquietação quanto a isso.
Até mesmo quando há uma maior responsabilidade da parte dos patrões com o horário das trabalhadoras, como por exemplo quando ela tem o horário de descanso no período do meio dia, esse ainda está condicionado ao cotidiano dos patrões, isto é, é flexibilizado de acordo com as necessidades deles, como bem afirma Maria de Lourdes: “o horário de descanso é relacionado assim, não tem horário fixo porque é depois que eles almoçam”; de modo que podemos inferir que o ambiente doméstico no qual trabalham essas pessoas dificulta o cumprimento real de determinadas regras, visto que não há uma prescrição de trabalho que regule quais tarefas e em que tempo devem ser realizadas.
Diante de tais situações, quando são extrapolados o horário e a demanda de trabalho, as entrevistadas consideram que a remuneração não compensa os excessos de atividades. Maria da Conceição, por exemplo, diz que depois que passou a cozinhar (função que não realizava quando foi contratada) “teve aumento de coisa pouca no salário” e que quando fica mais tempo no trabalho “não tem nada por fora. É tudo incluído no salário mesmo”. Maria do Socorro, por sua vez, diz que quando ia fazer faxina (função que também não lhe cabia, já que foi contratada como babá) “ela [a patroa] nunca pagou por fora não. Acho que que ela nunca pagou não. Porque ela me pagava direitinho assim, sabe? Eu não me lembro dela ter pago nenhuma vez por fora, mas era um dia separado que eu ia pra limpar, sabe?”. Os patrões, ao que parece, não reconhecem esses excessos e, portanto, parecem não se sentir no dever de recompensar essas trabalhadoras.
Os sinais de apropriação se expressam nas mais diversas formas nessa relação patrão-empregada. Um dos mais presentes nas falas das trabalhadoras é a apropriação da força de trabalho, pois a maioria das entrevistadas assume que sente fazer mais coisas do que deveria e significa isso como uma forma de exploração. Contemplando e reforçando essas falas temos dois episódios de evidente adoecimento em decorrência do trabalho: o primeiro, é o caso de Maria de Fátima que atualmente é cozinheira e não trabalha na limpeza da casa porque adquiriu uma lesão no ombro, por ter ficado “arrumando, cozinhando, lavando e passando sozinha naquela casa! Passei mais de seis anos fazendo isso! Aí chegou um tempo que passou a prejudicar minha coluna, meus ossos, começou esse problema de bursite no braço”. O segundo é o caso de Maria das Graças, semelhante ao citado anteriormente mas que tem consequência diferente já que esta precisou deixar seu emprego, como relata: “adoeci do braço, né... de tanto trabalhar o braço ficou, eu fiquei doente. O braço ficou tipo dormente, eu não conseguia pegar nada, nem o celular eu pegava com essa mão. Fiquei doente e não consegui mais trabalhar, aí eu saí”. É importante entender esses dois casos observando que se trata de uma denúncia e é um sinal de tomada de consciência por parte dessas trabalhadoras, uma vez que elas deixam a função que a adoeceu e entendem que a causa de adoecimento é um trabalho que as sobrecarrega - o que poderia ser entendido de outra forma ou mesmo ignorado por elas.
Há grandes chances da queixa dessas duas trabalhadoras se tratar de casos de Lesão por Esforço Repetitivo ou Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho - LER/DORT que pode ser definida como
Conjunto de doenças que afetam músculos, tendões, nervos e vasos dos membros superiores (dedos, mãos, punhos, antebraços, braços, ombro, pescoço e coluna vertebral) e inferiores (joelho e tornozelo, principalmente) e que têm relação direta com as exigências do trabalho, ambientes físicos e com a organização do trabalho (CHIAVEGATO FILHO & PEREIRA JR, 2004).
Apesar delas não terem dado maiores detalhes sobre esse processo de adoecimento, ao ponto de termos certeza sobre o diagnóstico, dados do Instituto Nacional de Prevenção de Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (2013) mostram que o problema é a segunda maior causa de afastamento, sendo a faixa etária de 35 a 49 anos a mais atingida, na qual a categoria de faxineiros lidera, seguida da de empregadas domésticas. Além disso, segundo o Ministério da Saúde (2011), os membros superiores têm sido os mais atingidos por esse tipo de lesão, nas últimas décadas em todo o mundo.
Dessa forma, tendo em mente as condições precárias do trabalho doméstico, faz sentido supor que essas mulheres tenham sido acometidas de casos de LER/DORT, sobretudo se entendemos que esta é uma doença resultante do entrelaçamento de três conjuntos de fatores: fatores biomecânicos; fatores psicossociais e fatores ligados aos desequilíbrios psíquicos gerados em certas situações de trabalho (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2011).
A apropriação em sua dimensão mais corpórea vai além dessa questão do adoecimento de um membro, por exemplo. O caso de Maria da Conceição ilustra bem isso, pois ela é contratada como auxiliar de serviços gerais em uma empresa, mas realiza o serviço doméstico na casa do dono da empresa, ou seja, não parece ser apenas a força de trabalho dessa mulher que está ao dispor daquele que a contratou, mas ela própria. Maria de Fátima reitera essa forma de apropriação, a qual traz um claro resquício escravocrata não simplesmente pelo fato de ela ser uma mulher de fenótipo negro trabalhando na casa de pessoas brancas, mas pelo modo como ela foi tirada da casa dos seus pais ainda com onze anos de idade e levada à casa dessas pessoas desconhecidas para se “constituir como sujeito”. O trecho a seguir ilustra bem isso:
Então ele foi e pediu ao meu pai pra me trazer pra rua, entendeu? Pra ficar morando com ele, cuidando, olhando a menina dele. Então, eu não sabia nem o que era trabalho nesse tempo. Eu era uma criança! Ele me trouxe assim... ‘não, quero ela lá pra brincar com a minha menina e eu vou botar ela pra estudar e se ela quiser, até formo ela. Faço dela gente’” (Maria de Fátima).
Essa fala revela muito do caráter escravizador presente no trabalho doméstico, construído com base na história de colonização do nosso país, de modo que o emprego doméstico é, até hoje, marcado e significado pelas relações de escravidão estabelecidas há tempo atrás. Para Girard (1993) o contexto atual do trabalho doméstico, bem como o imaginário social que o permeia tem origem nas práticas e lógicas da escravidão, sobretudo no que diz respeito ao poder que tais práticas exerciam e que não foi perdido com a abolição da escravidão; tanto que atualmente a maior parte das empregadas domésticas são negras (61% delas, segundo o IBGE, em 2011).
A esse respeito, o DIEESE (2013) aponta que
O contingente elevado de mulheres negras no trabalho doméstico é consequência da histórica associação entre este tipo de atividade e a escravidão, em que tal função era majoritariamente delegada às mulheres negras. Atualmente, ainda existem resquícios dessas relações escravagistas no emprego doméstico, havendo, com frequência, preconceito e desrespeito aos direitos humanos e aos direitos fundamentais no trabalho [...] além disso, o emprego doméstico ainda permanece como uma das principais possibilidades de inserção das mulheres pobres, negras, de baixa escolaridade e sem qualificação profissional, no mercado de trabalho (DIEESE, 2013).
Esses resquícios supracitados afetam o emprego doméstico de modo que faz desta uma categoria desqualificada e traz problemas à construção de uma identidade política dessas trabalhadoras (ÁVILA, 2009), já que “a sociedade escravagista era particularmente preconceituosa quanto à indignidade de certas funções. Tudo que era atividade manual era considerado aviltante” (GIRARD, 1993, p.121).
É desse lugar que Maria de Fátima conta a sua história e, por vezes, fala como esteve naquela casa em um lugar de servidão integral àquela família. Ela diz que “não tinha pra onde eu sair, era todo tempo, até a hora das crianças dormirem. Aí eu ia dormir também e pronto”. O teor de escravidão é muito enfatizado quando ela diz “quando eu comecei a trabalhar lá não tinha esse negócio de pagar salário a ninguém não, pagava o que queria” e que “naquela época é como se fosse uma criada”. Diante dessa situação, podemos nos questionar sobre como se deu o processo de subjetivação dessa mulher, estando trabalhando há mais de 40 anos nessa mesma casa, na condição descrita. Quais as estratégias que ela utilizou para que conseguisse escapar, mesmo que minimamente, à opressão e exploração? Atualmente Maria de Fátima ainda continua trabalhando nessa mesma casa, mas a leitura da sua entrevista mostra como, ao longo dos anos, ela foi conseguindo se colocar enquanto sujeito e indo em busca da constituição da sua própria vida, separada da dos seus patrões. Hoje em dia ela não é mais residente, tem consciência dos seus direitos legais enquanto trabalhadora doméstica, não trabalha mais horas do que deve e não vai ao trabalho aos domingos - coisas que aconteciam quando morava na casa dos patrões. Entretanto, é inegável que a sua história de vida tenha impressões desse trabalho que durante muito tempo foi abusivo, mas essa mesma história de vida traz elementos que permitem a ela subverter o sistema de opressão posto.
O conhecimento da lei e dos direitos das trabalhadoras domésticas, seja por parte delas seja quando parte das suas patroas, parece funcionar como uma ferramenta de conscientização dessas mulheres no que diz respeito à sua condição de trabalhadora doméstica, uma vez que todas as entrevistadas estavam minimamente informadas do assunto e deram sinais de melhorias em decorrência da regulamentação da sua profissão - ou, no caso de não haver tal regulamentação, reconhecerem que isto significa desvantagem para si. Nesse sentido, é possível notar que existem gradações desse processo dentre as entrevistadas, se observarmos as diferentes maneiras como/se se impõem frente às/aos suas/seus patroas/patrões na exigência de direitos trabalhistas: algumas reclamam pela excessiva carga de trabalho, mas não para o/a empregador/a; outras chegam a conversar sobre isso com os/as próprios/as patrões/patroas e tem aquelas que não reconhecem que podem estar sendo exploradas.
O caso de Maria de Lourdes é interessante de analisar, pois a demanda para assinar a carteira de trabalho partiu da sua patroa, que assumiu isso como condição para se trabalhar na sua casa. Maria de Lourdes resistiu por não querer "sujar a carteira com assinatura de empregada doméstica" - fato este que demonstra a desvalorização da sua própria categoria de trabalho; entretanto Maria de Lourdes foi convencida e hoje para ela "acabou esse negócio de preconceito, é um trabalho como outro qualquer". No emprego seguinte Maria de Lourdes não hesitou e logo no primeiro mês sua carteira de trabalho foi assinada.
Análise Conclusiva
As respostas que fazem referência a questões de gênero foram bem mistas. A atribuição do trabalho doméstico às mulheres aparece em diferentes níveis: três das entrevistadas acreditam que o trabalho doméstico cabe por natureza à mulher, pois esta "já nasceu com o dom", " já nasceu sabendo", de modo que "o homem faz mas não é serviço de homem, não combina" e "a mulher fica com o serviço doméstico e o homem com o serviço braçal"; outras duas trabalhadoras afirmaram que não veem motivo para os homens não terem responsabilidades domésticas, entretanto, assim como as citadas anteriormente, o trabalho das suas casas é de inteira responsabilidade feminina (delas ou de filhas). Assumindo um posicionamento diferente estão as outras duas empregadas domésticas entrevistadas, as quais afirmam não haver justificativa para o fato desse trabalho recair sobre as mulheres, em sua grande maioria; elas dizem dividir as tarefas com os homens que moram consigo e são essas duas as únicas que ao menos já ouviram falar em feminismo, de modo que é sensato supor que em algum nível há uma relação entre esses fatos, em decorrência de em algum momento ou de alguma forma elas terem sido sensibilizadas sobre temáticas feministas.
Apesar de algumas falas das trabalhadoras revelarem certa falta de compreensão em nível aprofundado das situações às quais são submetidas, a maioria dá indícios de uma percepção de si mesma quando se queixam sobre o quão são exploradas, por exemplo. Os resultados encontrados durante a realização das entrevistas demonstram que essas mulheres não assumem a profissão de modo totalmente passivo; elas, em muitos momentos, reconhecem quais as suas necessidades, limites e implicações naquele emprego e vão encontrando os seus pontos de resistência para manter o trabalho minimamente saudável.
Maria do Socorro é a mulher que mais se colocou como consciente das próprias necessidades, de forma que, de acordo com o seu relato, esteve na casa em que trabalhava sem ser necessário abrir mão das suas próprias demandas em detrimento às do trabalho. Isso é visto, por exemplo, quando ela fala que durante todo o tempo que trabalhou em uma casa esteve acompanhando o problema de saúde que sua filha tinha, levando-a consigo ao trabalho. Além disso, diz que a necessidade de dar maior atenção à filha foi o motivo pelo qual se demitiu, fato este que é um indício de que ela não está suficientemente alheia de si ao ponto de renunciar às suas demandas enquanto mãe. Esse fato, inclusive, vem à tona como resposta à pergunta “quando você sente que está fazendo algo por você no seu trabalho?”, pergunta que tinha por intenção investigar exatamente esse ponto de consciência de si e teve três tipos de respostas: aquelas que pareciam sequer entender ao certo o que estava sendo perguntado; aquelas que compreendiam mas não enxergavam nada no seu trabalho que fosse feito para si, a não ser a questão monetária; e as que viam elementos no dia-a-dia que não faziam parte unicamente do serviço prestado aos/às patrões/patroas.
Outros fragmentos da entrevista de Maria do Socorro revelam essa consciência que ela tem das suas próprias necessidades em detrimentos às dos/as seus/suas patrões/patroas. Ela conta outra experiência de trabalho na qual achou que era necessário pedir demissão para cuidar dos filhos e só quando os julgou maduros o suficiente voltou a trabalhar; ainda que essa escolha tenha acarretado algumas dificuldades financeiras, ela parece não se arrepender. Contudo, mesmo sendo este um aspecto positivo no que diz respeito à importância dessas mulheres priorizarem as suas demandas pessoais em detrimento às exigências do trabalho, percebe-se como as forças do sistema patriarcal se mostram superiores ao movimento de resistência que elas assumem e nos coloca em meio a uma contradição: os filhos são de total responsabilidade da mãe, a qual se sente obrigada a permanecer em casa para cuidar da prole e abdicar de outros projetos; como por exemplo, nesse caso de Maria do Socorro que se viu na obrigação de interromper seus estudo e relata:
Eu até parei de estudar pra ficar com eles; eu ia pra escola estudar e aí quando batia a primeira aula eu ia pra casa ver, aí não ia mais. Pronto, parei no primeiro mês [...]. Eu fiz até a sétima. Aí engravidei, né? Aí depois voltei pra escola de novo, aí eu ia pra casa olhar eles e quando chegava em casa ficava em casa, não ia mais... desistia [...]nunca mais eu continuei... porque... até hoje o povo cobra assim ‘mulher, vai terminar pelo menos o segundo grau’. Mas eu não tenho mais coragem porque agora eu acho que o tempo é deles, sabe? Porque eu acho que filho tem que ter mãe perto pra tá olhando, porque olhe o tempo que eu... eu tenho que trabalhar, depois eu tenho que estudar... que hora eu vou cuidar deles? (Maria do Socorro).
Ao analisar os relatos dessas mulheres é importante entender as circunstâncias às quais estão submetidas em cada emprego pelo fato de a visão que o/a patrão/patroa tem do trabalho doméstico ser um dos aspectos que interfere no quadro a ser analisado. É diante desses aspectos que as trabalhadoras vão encontrando seus pontos de resistência e/ou escape ao que lhes é imposto. Maria do Socorro, por exemplo, em uma de suas experiências, passou por duas gravidezes e em ambas trabalhou até os sete meses de gestação; uma situação que ela narra como sendo difícil de lidar pois não houve significativa redução na carga de trabalho, mas ela diz “só que eu também fazia dentro da minha condição, porque eu tava com sete meses, minha barriga era muito grande e eu tava lavando o piso”.
Um ponto recorrente nessa questão das resistências que as trabalhadoras assumem nas tarefas cotidianas é o modo como organizam seus horários e afazeres diários. A maioria usa a liberdade relativa que possuem quanto ao modo e à ordem de fazer as coisas e às vezes até mesmo o horário de começar e terminar, sendo este um aspecto importante para a impressão de suas características no trabalho que, mesmo mínimas, se mostram importantes. Maria do Socorro diz “meu horário quem fazia era eu... eu chegava no serviço, eu me organizava, eu fazia dentro do meu tempo, né?” e “eu não me reclamava quando saía tarde porque tinha dias que eu saia muito cedo, eu acho que uma coisa compensava a outra”.
Foi possível, então, observar nas entrevistas realizadas algumas nuances entre os modos de se impor das participantes no que diz respeito ao lugar que ocupam enquanto mulher e trabalhadora doméstica na nossa atual conjuntura social. Foi viável, desse modo, observar de forma evidente que duas das mulheres tem ideias muito bem elaboradas acerca do modo como as relações entre homens mulheres operam e é baseando-se nessas ideias que elas acham as suas fugas em meio à realidade do trabalho doméstico. Essas duas mulheres, diferentemente das outras cinco observadas, são as que demonstram reivindicações e posicionamentos mais notáveis. Mesmo que elas duas tenham afirmado conhecer em algum nível o feminismo, esse conhecimento pareceu ser extremamente vago, de modo que caberia investigar quais são os pontos em comum, além deste, que há na história de vida dessas mulheres, que as fazem destoar da maioria. Podemos também supor que essas histórias de vida formam potencialidades que talvez sejam desenvolvidas a partir de discussões feministas, que façam com que essas mulheres conseguiam galgar degraus ainda maiores.
Maria do Socorro é uma dessas duas mulheres. Ela manifesta discordância quanto ao modo que as funções são comumente distribuídas entre os sexos. Quando questionada sobre a existência de homens realizando trabalho doméstico, ela diz que não conhece nenhum homem que o faz e completa:
Homem acha que mulher é que tem que fazer as coisas, né? Na cabeça deles é isso que se passa... quem tem que fazer o serviço da casa é a mulher [...] olha, eu acho assim: a época que mulher ficava em casa, marido saía pra trabalhar e mulher fazia a luta de casa sozinha, eu acho que isso já passou porque hoje em dia os homens eles não têm mais condições de suprir as nossas necessidades [...] E o mesmo horário que eles trabalham a gente também trabalha. Aí a gente chega em casa, a gente vai pra uma pia fazer comida, vai limpar a casa, vai lavar roupa e ele chega e se deita no sofá e não quer saber de nada. Tudo o que faz é só a mulher, né? E isso tá muito errado! Tá muito errado! Eu acho que isso é muito errado! Não existe mais isso! (Maria do Socorro).
Maria de Fátima é outra entrevistada que diz “já ter ouvido falar” sobre o feminismo e quando questionada sobre o porquê de existir mais mulheres do que homens no trabalho doméstico ela assume que é “por preconceito”. Essa é a mesma pessoa que reconhece a importância de criação de uma organização para as trabalhadoras domésticas, como o sindicato. Sobre isso, declara:
É importante porque ia ter um local onde a gente poderia resolver nossas coisas, né? A pessoa ali, pra resolver os problemas da gente, as coisas da gente e tudo... tem uma pessoa por a gente, não é? Pra dar uma palavra por a gente, né? Lutar pelos direitos da gente, as coisas... é difícil, é complicado (Maria de Fátima).
A visão que Maria do Socorro tem acerca da sua profissão fala muito sobre esse reconhecimento que tem da sua condição enquanto mulher, trabalhadora doméstica em meio ao sistema capitalista patriarcal. O trecho a seguir fala acerca da visão que esta mulher tem da profissão de doméstica:
Uma grande maioria acha que a classe de doméstica ela é mesmo menor que os outros, ela não tem o mesmo valor que qualquer outra. Às vezes até uma pessoa que limpa um hospital, que limpa uma loja, uma firma, ela tem mais valor do que uma doméstica, mesmo fazendo o mesmo serviço, mas ela tem mais valor do que uma doméstica [...] eu acho assim: que é uma profissão como qualquer outra, eu acho que deveria ser respeitado, sabe? Porque se você tem condições... olhe só: uma pessoa que é médica, ela tem tempo de limpar a casa? Então o que é que acontece... eu acho que deveria ser valorizada. Porque? Por que se você é uma médica, você tem tempo de chegar em casa e fazer comida? Que hora você vai atender seus pacientes? Você é chamado dez horas da manhã pra atender um paciente, você tá com a cara no fogo, você vai desligar o fogão e vai correr pro hospital? Então precisa de uma doméstica, então eu acho que deveria respeitar. Não, eu não preciso amar a minha doméstica, mas eu preciso respeitar ela! Eu preciso atender ela como eu atenderia qualquer outra pessoa, falar com ela como eu falo com a atendente da loja, com a enfermeira do hospital que eu trabalho, com qualquer outra pessoa, mas muitos não... eles falam com a pessoa como se ela já fosse menor que os outros, né? Mas eu acho que é uma classe normal (Maria do Socorro).
Maria de Fátima demonstra semelhante entendimento sobre seu trabalho, pois quando questionada sobre como acha que é visto o trabalho de empregada doméstica ela diz:
Com muito preconceito ainda. Com muita discriminação ainda, muita! Apesar de tantas coisas que já mudaram, mas ainda tem muita discriminação ainda, assim desvalorização, vamos dizer. É desvalorizado, não é valorizado ainda como deveria. Não é ainda. Eu espero que ainda melhore mais. Já melhorou bastante! Já exigiram a nossa carteirinha assinada, nosso direito de trabalhista normal, pra nós ser igual qualquer trabalhador, que nós não tinha esse direito, você sabe, não tinha! Nós não tinha esse direito (Maria de Fátima).
Diante do que foi posto até aqui, é possível concordar com as produções acadêmicas da área que apontam que o trabalho doméstico costuma ser um dos dispositivos sob o qual o patriarcado se apoia para perpetuar a dominação sob as mulheres, tendo em vista as condições de exploração com as quais as trabalhadoras se deparam e sendo o trabalho doméstico majoritariamente feminino. Entretanto, os relatos das entrevistadas são diversificados ao ponto de conseguirmos obter diferentes pontos de vistas acerca das questões de gênero que estão envolvidas nas relações do trabalho, bem como do modo como essas mulheres operam na relação exploração/opressão e resistências. Foram vistas nuances que nos revelam que fatos da história de vida dessas pessoas, somados às estratégias desenvolvidas no cotidiano podem servir para romper com imposições, desde fissuras sutis até colocações veementes.
É desse modo que precisamos entender qual o lugar de ideologias como o feminismo na missão de somar à vida dessas e de tantas outras mulheres, ao tornar ainda mais reais as suas potencialidades e trazer-lhes condições de vida e trabalho dignas, por meio de discussões, sensibilizações e ações. Mesmo diante de um cenário que, como anteriormente caracterizado, opera em vários níveis na vida dessas trabalhadoras, é primordial aproximar-se dessas realidades, questionar e fazê-las se questionar sobre o seu lugar nesse contexto. E, por fim, percebermos que a subversão à apropriação, à exploração e à opressão é uma construção coletiva que começa, literalmente, dentro de casa.
Micaelly Priscila Gomes Lima é mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Psicóloga pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Kaliani Rocha é Docente do Departamento de Psicologia da UFPE e coordenadora do NUT, orientadora deste trabalho.
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