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As armadilhas do feminismo radical

  • Erica West
  • 14 de ago. de 2017
  • 9 min de leitura

A luta contra o capitalismo continua sendo o único caminho rumo à libertação plena das mulheres

*Artigo originalmente publicado no Jacobin e traduzido por Roseane Rezende de Freitas com autorização da revista.

Membros da Liga de Organização Sindical das Mulheres de Nova York posam com um estandarte convocando para o dia de oito horas em 1910. Kheel Center / Flickr

Para muitas feministas socialistas, é fácil criticar o feminismo liberal. Muitas de nós chegaram ao socialismo a partir do liberalismo e tiveram uma compreensão clara dos seus limites e falhas.


Entretanto, a história e a essência do feminismo radical são bem menos conhecidas. Embora o termo “radical” do feminismo radical pareça sugerir uma política que os socialistas adotariam, um olhar mais de perto revela uma ideologia incompatível com o feminismo socialista. Abominado por uma compreensão restrita da opressão de gênero e uma estratégia equivocada para a mudança, o feminismo radical, em última análise, falha ao oferecer às mulheres um caminho claro para a libertação.


O feminismo radical surgiu na segunda onda do feminismo nos anos de 1970, junto, mas mutuamente separado do feminismo socialista e marxista. Contudo, compartilham alguns pontos em comum. Como as feministas socialistas, as feministas radicais discordam do individualismo do liberalismo e argumentam que opções pessoais e conquistas individuais não são suficientes para transformarem a sociedade. E situam a opressão às mulheres em um contexto social mais amplo.


Desde o começo, as feministas radicais se preocuparam especialmente com violência sexual e doméstica, vendo-as como fundamentais para a opressão das mulheres. Andrea Dworkin, uma das feministas radicais mais proeminente dos anos de 1980, destacou-se em sua cruzada contra a violência sexual. Em um de seus discursos mais famosos, “Quero uma trégua de 24 horas sem estupros”, ela implorou aos homens no auditório que tentassem compreender o medo profundo de violência sexual com o qual as mulheres vivem todos os dias.


O compromisso no combate à violência sexual — um flagelo que impede todos os aspectos das vidas das mulheres — é admirável. Assim como a ênfase das feministas radicais em modificações em larga escada e não em ajustes em pequena escala.


Mas a maneira como as feministas radicais tendem a atuar sobre a mudança é problemática e sintomática de falhas mais profundas em sua ideologia.


O trabalho delas contra a pornografia foi emblemático. Nos anos de 1980, muitas feministas radicais trabalharam para banir a pornografia, vendo-a como inerentemente misógina e violenta. Algumas, como Andrea Dworkin e Catherine MacKinnon — uma acadêmica, advogada e professora feminista radical — foram muito mais além. Unindo-se a cristãos da extrema direita como Edwin Meese, fizeram pressão por alguns decretos locais para eliminação da pornografia. “Entre os muitos legisladores com quem trabalhamos no decreto”, MacKinnon se entusiasmou em um op-ed [texto oposto à página de editorial] de 1990 do New York Times, “um é conservador em termos de política. Estamos honrados por trabalhar com ela”.


Alguns aspectos da pornografia são, sem dúvida, desprezíveis, racistas e violentos. Mas proibir a pornografia faria pouco para tratar das preocupações imediatas e materiais das mulheres envolvidas no setor. E não faz sentido trabalhar com conservadores para combater a opressão às mulheres. São as mesmas pessoas que querem limitar o aceso das mulheres à saúde reprodutiva e reverter o estado de bem-estar já deficiente.


O trabalho contra a pornografia das feministas radicais deixa claro os riscos de errar na identificação das raízes da opressão das mulheres. Depender do estado para censura, encorajar dispositivos carcerários, fazer alianças com oponentes da mudança progressiva — é para onde a análise do feminismo radical nos leva.


Classe e a origem da opressão das mulheres


No cerne dos tropeços teóricos do feminismo radical está a concepção de classe.


Para as feministas radicais, as duas principais classes da sociedade não são a classe trabalhadora (que vende sua força de trabalho) e capitalista (que a explora), mas homens (os opressores) e mulheres (as oprimidas). É a teoria do patriarcado.


As feministas radicais nem sempre reconhecem o capitalismo, e mesmo quando reconhecem, elas o consideram uma esfera completamente separada, isolado da opressão feminina. O objetivo definitivo delas é abolir o gênero, que veem como inerentemente hierárquico e opressivo com as mulheres.


Embora os marxistas compartilhem essa antipatia com o patriarcado, temos uma concepção diferente das classes e das raízes da opressão das mulheres. Definimos classe não em termos de gênero, mas em termos econômicos: a classe de uma pessoa é determinada por sua relação com os meios de produção e do estado. Hillary Clinton e Sheryl Sandberg, por exemplo, estão em uma classe muito diferente daquela aluna de faculdade que luta pela sindicalização ou da mãe que tem quatro empregos em restaurantes de fast-food por um salário mínimo.


Os socialistas se opõem a todo e qualquer comentário sexista feito sobre Clinton, Sandberg e outras mulheres da elite. Mas permanece o fato de que seus interesses como capitalistas e políticas com muito dinheiro são fundamentalmente singulares com relação aos interesses da vasta maioria da sociedade.


Um exemplo recente: quando as trabalhadoras tentaram sindicalizar o hotel Double Tree Hilton em Cambridge, Massachusetts, alguns anos atrás, elas explicitamente pediram o apoio de Sandberg, dizendo que estavam seguindo seu conselho ao “se curvarem”. Sandberg recusou-se a apoiar. E isso não é de se admirar. A “irmandade” universal estava contra os interesses concretos do capital. As fidelidades reais de Sandberg surgiram completamente em alto e bom som.


Como marxistas, sabemos que o inimigo não são os homens, mas a classe capitalista — que, por si só, tem mais de um gênero e mais de uma raça — e que nossa estratégia deve refletir isto. A opressão às mulheres não é inata nos seres humanos, ao contrário, ela surgiu em um momento histórico e político particular, junto com o desenvolvimento da sociedade em classes e a família nuclear.


A opressão às mulheres persiste não apenas porque os homens nos odeiem, mas por causa da função que desempenhamos historicamente na família nuclear. Enquanto os homens iam para o trabalho todas as manhãs para se ocuparem da produção capitalista — montar carros nas fábricas, escrever peças processuais no escritório — as mulheres normalmente se incumbiam do que é conhecido como reprodução social: a reprodução biológica de novos trabalhadores (ou seja, ter filhos) e a reprodução do dia a dia dos trabalhadores — lavar roupa, alimentar a família, deixar as crianças prontas para a escola, entre outros.


Mesmo em décadas recentes, conforme as mulheres entravam em massa na força de trabalho paga, elas ainda eram sobrecarregadas com o “segundo turno”, cumprindo a reprodução social em casa depois de voltarem do trabalho.


Todas essas tarefas são vitais para o capitalismo. Os trabalhadores precisam ser alimentados, vestidos e preparados todos os dias para que o capitalismo funcione. Mas é interessante para o capitalismo que esse trabalhoseja feito gratuitamente e na esfera privada.


Como resultado, as feministas socialistas argumentam que a única maneira de libertar as mulheres é acabar com a sociedade em classes, de uma vez por todas.


Ao longo do caminho, há reformas pelas quais podemos e devemos lutar, como o aumento do salário mínimo, a licença maternidade paga e a implementação dos cuidados infantis universais. Feministas socialistas como Sylvia Federici também defenderam “salários para donas de casa”, para oferecer independência financeira às mulheres e reconhecer as tarefas delas na esfera doméstica como trabalho. Outras, como Angela Davis, propuseram a socialização dessas tarefas domésticas para remover a desigualdade e o fardo de gênero das mulheres.


Mas nenhuma dessas reformas — muito menos a queda do capitalismo — será obtida sem movimentos sociais sólidos e unidos. E é aí que a classe trabalhadora entra. Por causa de sua posição na sociedade, a classe trabalhadora como um todo — em toda sua glória de vários gêneros, raças e gerações — é o agente social que pode lutar pela reforma radical e, para ir além, contra o capitalismo.


Este objetivo final inclui a abolição de gênero? Provavelmente! Citando Engels:


Isso será respondido quando uma nova geração tiver crescido: uma geração de homens que nunca em suas vidas tenham tido conhecimento do que é comprar a entrega de uma mulher, com dinheiro ou com outro instrumento social de poder; uma geração de mulheres que nunca tenham tido conhecimento do que é se entregarem a um homem por causa de outra compensação além de amor real ou que se recusem a se entregarem a seus amados com receio das consequências econômicas. Quando essas pessoas estiverem no mundo, se preocuparão muito pouco com o que alguém pensa que deveriam fazer; elas estabelecerão suas próprias práticas e opiniões públicas correspondentes sobre a prática de cada indivíduo — e isto será o fim dessa situação.


Feminismo radical e suas exclusões


Nos últimos anos, a compreensão de muitas pessoas acerca do feminismo radical foi tonalizada por opiniões de TERFs, feministas radicais transexcludentes. Nem todas as feministas radicais são TERFs. MacKinnon foi uma apoiadora sincera dos direitos trans por décadas e criticou TERFs por sua intolerância. “Qualquer pessoa que se identifique como mulher, que queira ser mulher, que esteja sendo mulher, pelo o que sei, é mulher”, ela disse em uma entrevista em 2015.


Embora não sejam sinônimos, o feminismo radical tem muito de TERFs em suas classificações e suas principais ideias o levou a uma exclusão de pessoas trans, especialmente mulheres trans.


Para muitas feministas radicais, não importa com qual gênero alguém se identifica e pelo qual se apresenta— só importa o gênero que recebeu no nascimento. Se os homens são os opressores e a fonte de opressão das mulheres, esses homens continuam a manter o poder opressivo, mesmo depois da transição. A socialização como homens, não importa se curta ou atormentado por disforia de gênero e violência, os transforma em agentes da opressão feminina. Assim, muitas feministas radicais banem pessoas trans e, em particular, mulheres trans de sua política e espaços de organização.


Essa exclusão não é só fanatismo— é hipocrisia: as feministas radicais fazem campanhas vigorosas contra a violência sexual, e mulheres trans sofrem com taxas desproporcionalmente altas de violência sexual e física (particularmente mulheres trans não brancas).


As TERFs podem argumentar que as mulheres trans não compartilham um sistema reprodutor com as mulheres cis e, por isso, não entendem as batalhas das mulheres por controle de natalidade e contra a esterilização forçada. Mas o que dizer da solidariedade com as mulheres lésbicas ou com as mulheres cis que não podem ou optaram por não ter filhos? Os argumentos que as TERFs apresentam são fracos e preconceituosos.


O feminismo radical também é visivelmente calado sobre a questão do racismo, e é responsável por uma estratégia politicamente suspeita para combatê-lo.


Homens não brancos perpetuam o sexismo exatamente como homens brancos. Mas a experiência de racismo também os cega, como às mulheres não brancas em suas comunidades. Como Sharon Smith escreve, “a necessidade de lutar com os homens para combater o racismo ou a luta de classes deixou as ideias separatistas pouco atraentes” para mulheres não brancas.


De fato, para muitas mulheres, a batalha contra o racismo está inextricavelmente vinculada à batalha contra a opressão sexista (ambos arraigados no capitalismo).


O Coletivo Combahee River, um grupo legendário de feministas negras socialistas, incorporou esta compreensão, escrevendo em sua declaração de 1979: “Precisamos articular a situação de classe real das pessoas que não são simplesmente trabalhadores sem raça e sem sexo, mas para quem a opressão racial e sexual é determinante significativo em suas vidas laborais/econômicas”.


As mulheres não podem diminuir suas experiências de opressão meramente por gênero. A maioria de nós é trabalhadora. Muitas de nós somos mães, não brancas, membros da comunidade LGBTQ, e muito mais. Precisamos compreender como todas essas coisas estão vinculadas a fim de lutar contra a dominação em todas as esferas — e ganhar.


Como combater a opressão das mulheres


Enquanto as feministas radicais definem o separatismo como estratégia política— e, para algumas, objetivo — as feministas socialistas compreendem que nosso poder está em nossos números. A divisão entre homens e mulheres da classe trabalhadora, entre pessoas cisgênero e pessoas transgênero — são fissuras prejudiciais para os nossos objetivos gerais. Só enfraquece a nós e nosso combate contra o capitalismo, que é muito mais difícil.


O objetivo das feministas socialistas é construir solidariedade em toda a classe trabalhadora. Nossos destinos estão conectados, e a luta contra a opressão de gênero não pode ser separada da luta contra a transfobia, racismo e capitalismo mais amplamente. Qualquer movimento ou teoria do feminismo que, explícita ou implicitamente, exclua as pessoas trans, se refira a eles por outro gênero intencionalmente ou perpetue a transfobia não tem razão de estar na Esquerda.


Recentemente, O Fórum de Esquerda pegou fogo ao incluir um painel que questionou a legitimidade da pessoa transgênero e sua necessidade de assistência médica. Depois de muita controvérsia, ele foi cancelado — e com motivos. Conforme o movimento dos direitos dos transgêneros ganham força, nós, da Esquerda, devemos ser diretos em nossa solidariedade com as pessoas transgênero e inconformadas com o gênero.


Há coisas que podemos considerar inspiradoras no feminismo radical, como a ênfase na violência sexual, a análise das raízes da opressão às mulheres e as ideias resultantes sobre a organização política do fracasso.


Em lugar de ver os homens como a origem principal da opressão às mulheres, devemos identificar a sociedade de classes como a culpada. A luta contra o capitalismo continua sendo o único caminho em direção à libertação completa das mulheres.


Sobre a autora: Erica West é membro da Organização Internacional Socialista e formada pela University of California Berkeley. Mora em Oakland.

 
 
 

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