Aborto chega ao Supremo Tribunal Federal
- Rafaela Alice Faria
- 27 de set. de 2017
- 5 min de leitura
O HC 124.306 – RJ e a ADPF 442 exploram novos panoramas quanto à questão do aborto e dos direitos da mulher, associados à dignidade da pessoa humana, à liberdade de escolha e aos direitos sexuais e reprodutivos.

O Habeas Corpus nº 124. 306, de 29 de novembro de 2016, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, iniciou uma nova perspectiva para o debate sobre a descriminalização e a legalização do aborto ao considerar possível a interrupção voluntária até o final do primeiro trimestre de gestação. O HC concedeu soltura dos réus e reputou a criminalização do aborto até o final do primeiro trimestre uma violação dos direitos fundamentais da mulher.
Segundo análise da advogada, mestra em Direitos Humanos e colunista do Justificando, Tamara Amoroso Gonçalves, tal decisão, embora seja apenas de uma das turmas e não do pleno do Supremo Tribunal Federal e, portanto, não vinculante, estabelece um precedente importantíssimo, já que considera a criminalização da prática de aborto uma violação dos direitos fundamentais das mulheres, violando a autonomia, o direito à autonomia individual, à liberdade de escolha e à integridade física e mental, além dos direitos sexuais e reprodutivos. Essas violações trazem ao campo argumentativo toda a ideia de direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos, acrescenta (VALENTE, 2017).
O voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso enumera um argumento que introduziu os direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos:
A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. (Habeas Corpus nº 124.306, Primeira Turma, Supremo Tribunal Federal, Relator: Ministro Marco Aurélio, Julgado em 29/11/2016).
Além desse aspecto, a decisão aborda a desigualdade social existente no Brasil: as mulheres com poder aquisitivo acessam um serviço seguro, mesmo que ilegal, enquanto as não abastadas sofrem com procedimentos realizados em ambientes insalubres, sujeitando-se a pagar inclusive com a vida.
A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. (Habeas Corpus nº 124.306, Primeira Turma, Supremo Tribunal Federal, Relator: Ministro Marco Aurélio, Julgado em 29/11/2016).
Barroso articula que a criminalização não protege devidamente o direito à vida do nascituro e também não reduz a quantidade de abortos realizados no Brasil, violando o princípio da proporcionalidade (GRILLO, 2016).
Dessa forma, a fomentação propiciada por essa decisão do Supremo pulsiona um precedente importantíssimo, mesmo que seu caráter não seja vinculante, ou seja, não compele outros tribunais a adotar o mesmo posicionamento. A argumentação de Barroso traz à tona a ideia de que os artigos que incriminam o aborto violam explicitamente os direitos das mulheres, e como muitos grupos defensores da descriminalização e da legalização discutem há anos, tais artigos não teriam sidos recepcionados pela Constituição Federal de 1988 (VALENTE, 2017).
Assim, o deslocamento do debate sobre o aborto, saindo do âmbito legislativo para o judiciário, impulsionou ainda a propositura da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que visa analisar a criminalização do procedimento sob a ótica da Constituição. A Arguição é uma ação de competência originária do STF, que busca reparar ou sanar lesão a preceito fundamental com efeitos erga omnes e vinculantes, ou seja, que vale para todos.
A proposta solicita a declaração de não recepção dos artigos 124 e 126 do Código Penal pela Constituição da República. Alega:
As razões jurídicas que moveram a criminalização do aborto pelo Código Penal de 1940 não se sustentam, porque violam os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, da saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas, em ofensa às normas constitucionais vigentes (art. 1º, incisos I e II; art. 3º, inciso IV; art. 5º, caput e incisos I, III; art. 6º, caput, art. 196; art. 226, § 7º) e aos instrumentos internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário.
Busca, convencido do “caráter não absoluto e sim gradual da proteção jurídica conferida ao desenvolvimento embrionário e fetal”, obter da Corte Constitucional decisão que assegure a “convivência harmoniosa” entre as regras penais referidas e os direitos fundamentais e outras normas constitucionais vigentes, valendo-se das premissas por ela estabelecida no HC 84.025, na ADI 3.510, na ADPF 54 e no HC 124.306.
O autor pede concessão de liminar para suspender prisões em flagrante, inquéritos policiais e processos ou decisões judiciais baseados na aplicação dos artigos 124 e 126 do Código Penal a casos de interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas. No mérito, pede a declaração de não recepção parcial dos dispositivos pela Constituição, excluindo do âmbito de sua incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas, “de modo a garantir às mulheres o direito constitucional de interromper a gestação, de acordo com a autonomia delas, sem necessidade de qualquer forma de permissão específica do Estado, bem como garantir aos profissionais de saúde o direito de realizar o procedimento (DUPRAT, 2017).
A arguição busca não apenas sinalizar a não recepção dos artigos criminalizadores do aborto, mas também propiciar uma efetiva igualdade de gênero. No conjunto de argumentos para subsídio à manifestação da ADPF n. 442, Duprat reforça como a figura feminina sempre sofreu, historicamente, com o tratamento desigual na sociedade, sendo vista como um elemento passivo do grupo, sem um papel significativo, desempenhando atividades correlatas ao âmbito familiar como reprodução, criação e manutenção do lar. Para ela, o controle do corpo e a possibilidade de planejamento da reprodução pela mulher exprime o reequilíbrio dos gêneros. O texto constitucional não positivou expressamente a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, mas salienta-se que, ao tratar da dignidade da pessoa humana, os referidos direitos estão interligados: “a expressão de garantia de domínio do próprio corpo está no princípio da dignidade da pessoa humana e na sua ideia de força de autonomia/autodeterminação”, afirma Druprat.
Nesse cenário, debatem-se novos panoramas quanto à legalização e à descriminalização do aborto. Evidente que tal temática ainda representa uma grande divergência, a decisão proferida pelo STF no HC n. 124.306 sinaliza para reversão desse quadro desigualitário, em que a norma pune e criminaliza a mulher, retirando sua autonomia. Deve-se destacar a mulher como cidadã ativa detentora de deveres e direitos e, portanto, não pode ter seus direitos fundamentais violados. Afinal, como ser feliz sem ser livre?
Sobre a autora: Rafaela Alice Faria é agente administrativa na Prefeitura Municipal de Avaré. Discente do curso de Direito da Faculdade Eduvale de Avaré. Contato: rafaalice7@gmail.com.
REFERÊNCIAS
A ADPF 442: ousadia necessária para descriminalizar o aborto. São Paulo: Justificando, 2017. Acesso em: 18 mai. 2017.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 124.306, da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal. Brasília, DF, 29 de novembro de 2016. Acesso em: 05 mar. 2017.
DUPRAT, D. Conjunto de argumentos para eventualmente servir de subsídio à manifestação a ser exarada nos autos da ADPF 442. Brasília: Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, 2017. Acesso em: 13 mai. 2017.
GRILLO, B. Interromper gestação até 3º mês não é crime, decide 1ª Turma do STF em HC. São Paulo: Consultor Jurídico, 2016. Acesso em: 05 mar. 2017.
REBOUÇAS, M. S. S. O aborto provocado como uma possibilidade na existência da mulher: reflexões e fenomenológico-existenciais. Natal, 2010. p.17. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Departamento de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2010. Acesso em: 17 mai. 2017.
VALENTE, F. Análise do julgamento da descriminalização do aborto. São Paulo: Justificando, 2017. Acesso em: 14 mai. 2017.
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