A mãe da minha amiga
- Iara Gonçalves Carrilho
- 7 de jul. de 2017
- 7 min de leitura

Eu, quase sempre, era daquelas crianças sem pai no dia dos pais, ou só com a mãe nas apresentações do colégio; aquela que, quando os amiguinhos contavam das maravilhas de ter um paizão, não se identificava e nem sabia se situar naquela situação. Fingia que não era comigo. Eu nunca sofri com isso. Não sabia do que se tratava, mesmo, ter aquela figura em casa. O que acontecia naquela roda, sentada “como índio”, era aquele sentimento de não pertencer. E meu pai não morreu ainda, que fique bem claro. Apenas escolheu não ser tão meu pai quanto foi de seus outros filhos.
Quando eu era menina, no início da década de 1990, eram poucas as crianças na minha situação. A maioria tinha mãe e pai morando juntos. Naquela época, muitas eram as mães que trabalhavam como donas de casa.
Nós crescemos. Eu me tornei alguém que estuda Gênero — coincidência, ou não, com essa minha raiz. Sou advogada, especialista em Ciências Criminais e escrevi um livro (que em breve será publicado!) sobre isso: sobre como a desigualdade (ou melhor, a inequidade) de gênero traz tantos efeitos nefastos, como, por exemplo, o superencarceramento de mulheres nos últimos anos. Tudo isso devido à imagem que se construiu do lugar que a mulher pode ter na sociedade. Meu livro se chama A violência de gênero além das grades, e será publicado pela editora jurídica Lumen Juris, com lançamento previsto para outubro! Eu não poderia deixar de fazer esse jabá.
Sei que, hoje, as minhas amigas — aquelas, das mães que são donas de casa — comentam comigo que suas mães se cansaram de cozinhar, de passar, de lavar. Que querem mais, que querem viver. Nessas palavras. Já me aconteceu três vezes, em situações distintas, em um curto espaço de tempo.
Seus filhos saíram de casa, e lá ficou o marido, com as suas demandas de sempre. E criando outras novas, para se deliciar com a sensação do controle sobre aquela mulher. E eu me vi, de alguma forma, com a incumbência de ajudar, com o conhecimento que tenho, essas mulheres a conquistarem o direito de viver como quiserem. Não me refiro a todos os casamentos, obviamente. Nem sei se precisaria dizer isso, mas, nesses tempos, creio que preciso deixar registrado, sim. Vamos lá: eu me refiro a um tipo de relacionamento, somente. Aquele cercado de inúmeras violências, em especial, de gênero, na modalidade psicológica. Nem todos os casamentos são assim. Dã.
Como qualquer fruto de minha geração, peguei meu celular e joguei no Google: “Dona de casa desigualdade de gênero machismo dicas ajuda”. Joguei assim.
As informações encontradas na internet sobre relacionamentos abusivos, sobre o machismo e sobre a dificuldade na divisão e valorização das atividades domésticas tem um foco muito específico. E apesar do valor e da importância dessa abordagem presente na mídia online para prevenção e identificação deste tipo de relacionamento, a informação disponível parece simplificar muito esta questão.
As dicas de “como saber se você está em um relacionamento abusivo” parecem servir apenas a uma adolescente ou a alguém bem novo, que sofre daquele amor tipicamente jovem, intenso e inconsequente. Alguém que se vê (ou ainda não se vê) envolvido na complicada teia construída por um parceiro que, entre outras injúrias, pratica o gaslighting [1]. Não há nada de menos trágico nesse cenário. Porém, esse público-alvo tem a possibilidade de se distanciar de tal situação. Com dificuldade, mas não com as mesmas dificuldades que teriam as mães das minhas amigas.
E as dicas práticas para que se identifique um relacionamento abusivo, como “ele pega seu celular, deixa de seguir o fulaninho, seu colega do inglês. Pá: relacionamento abusivo”, não servem de nada para as mães das minhas amigas. E mesmo para as meninas mais novas, as informações não dizem muito sobre como ensinar educação de gênero às pessoas munidas de conceitos deturpados. Ensinar, quem sabe, a um próximo parceiro que, tomado por conceitos equivocados do valor que tem uma mulher, desandou a falar besteira, mas que ainda tem potencial para recuperação, na sua condição inafastável — ainda não óbvia — de ser humano.
Nas informações buscadas no Google, nada foi dito sobre o que fazer com um ser de sessenta anos que realmente tem a convicção de que a sua esposa deve lhe servir para tudo o que precisar quando chega “cansado” do trabalho; que acredita ser coerente o raciocínio de que ele “traz o dinheiro para dentro de casa” e o “mínimo” que a mulher pode fazer é cuidar de todas as necessidades dos ocupantes do lar – menos das dela –, como organizar as contas, se incumbir de todas as refeições, da limpeza, das compras de supermercado, de “ficar bonita para ele”... e tantos outros afazeres que ele acha essenciais, mas não gasta nenhum segundo sequer com algo que se assemelhe ao reconhecimento.
Um ser que acha que não há violência nenhuma em proferir frases do tipo: “como é que o supermercado foi tão caro esse mês? Você precisa pesquisar melhor os preços! Está gastando todo o meu dinheiro!”; que pensa que é natural que tudo que aconteça de errado em casa seja culpa de sua esposa; que acredita ser uma vivência absolutamente digna para ela não ter qualquer autonomia financeira; que afirma: “os filhos ‘estão assim’ por causa da educação que ela deu” e pensa que tal fala é compreensível e adequada; que acha normal dar a ela quaisquer tarefas ao longo do dia, sob o argumento verbalizado de que “ela não faz nada o dia inteiro”; que sua companheira tem que se submeter a tudo isso mesmo, já que “escolheu” não trabalhar.
O que dizer para essas mães das minhas amigas? Que têm uma parceria de mais de trinta anos com esses seres? Que são dependentes financeiramente desse tipo de pessoa? Que sofrem inúmeras violências diárias, mas acham que esse preço, essa cruz, devem mesmo suportar, afinal, elas próprias acreditam que “não fazem nada mesmo”, que não têm valor? Ou ao menos, tanto valor?
O que eu digo para essa mãe que, durante sua infância, foi doutrinada a pensar no casamento e na maternidade como prêmios e que, no alto de seus vinte e poucos anos, quando não menos, conseguiu esses prêmios e passou a precisar fazer o que fosse preciso para mantê-los, custasse a violência que custasse? O que dizer para essa mulher que cria seu marido desde seus vinte e poucos anos? E que ainda cria, em um processo que ainda não chegou ao fim, afinal, ele não sabe se virar até hoje. A mãe o criou para ser servido, sua esposa só o fez confirmar essa sensação. Infelizmente, educou seus filhos homens também assim. A mãe da minha amiga tem dó do seu companheiro. Ela pensa que, sem ela, ele é muito pouco. E é mesmo. Mas, ainda assim, ela acha que não tem direito real sobre as coisas daquele patrimônio conjunto. “O dinheiro é dele, do trabalho dele”, ele sempre fala isso. E ela também. REC, repete.
Só que ele acorda e a mesa está posta. Sai e não guarda nada na geladeira. Não lava a louça. Não sabe o que falta na despensa. Não sabe quanto custa e nem como se usa o amaciante. Também não quer pagar o preço justo de uma diarista ou de uma empregada doméstica. Pechincha o trabalho doméstico, pois “trabalho em casa não é trabalho”. Só o dele é trabalho de verdade. Sua única preocupação é trabalhar no que entende por um “emprego sério”. Ser um bom esposo, um bom pai, também não está na sua lista de prioridades. Mas enche a boca para dizer, repetidas vezes, que sustenta a casa com seu valioso ofício.
A mulher que trabalha quase no mesmo tipo de serviço que esse cara de sessenta anos entende por trabalho (porque uma mulher, mesmo fora de casa, nunca estará à altura das funções que ele desempenha no mercado), que também sofre com a acumulação das cargas, pelo menos pode usar isso como argumento: “Eu também trabalhei o dia inteiro, hoje você lava a louça”. Muitas donas de casa, entretanto, sofrem caladas, violentadas, sem saber o que fazer com tantas agressões.
O que eu digo para a mãe da minha amiga?
Eu queria dizer que ela fizesse a experiência de não pagar as contas no banco; que ela não cozinhasse para mais ninguém; que ela não lavasse a louça mais, nem a sua; que ela não passasse roupa; que ela não arrumasse a casa; que ela já trabalhou muito nessa vida, mais que todo mundo. Mas tenho muito medo de dizer isso, pois dar esse recado — num grito de salvação, para provar seu valor e sua dignidade — é arriscado e, infelizmente, não garante resultados. O sofrimento feminino geralmente tem esse efeito: nenhum. Porque esse ser de sessenta anos tem ideias muito deturpadas sobre o valor da mulher, e a resposta a esse recado pode ser a violência.
Eu diria a ela que pensasse se quer mesmo esse casamento injusto, para que consiga, então, lutar pelos seus direitos. E que ela se convença intimamente que, no patrimônio conquistado ao longo dos anos, tem muito de seu suor e lágrimas. Porque, hoje, o sentimento dela não é esse. Quase tudo o que ela sente é culpa e desvalor de si mesma.
Só que meus poucos palpites não dão conta de mostrar a esse ser de sessenta anos, de esfregar na sua cara, o valor que a mulher, seu suor e suas lágrimas, têm.
Eu estou cansada de ouvir que o machismo consolidado não tem jeito. Faço aqui um clamor àqueles que trabalham com os desdobramentos das violências de gênero para uma mudança de perspectiva. Que passem a incluir essa massa representativa de mulheres em seus discursos, estudos e dicas. Porque essas mulheres, seus esposos, seus filhos precisam muito de educação em direitos de gênero.
Mas, para essas mães, eu já digo logo: se em relação àquele ser, que ela conhece tão bem, as tentativas, os diálogos, as terapias forem em vão, se não tem jeito mesmo esse machismo consolidado e o que sobra são só as violências e a dó de deixá-los à própria sorte, meu único conselho (que, de fato, ninguém me pediu) é: separem-se. Libertem-se.
Se ainda restar o amor e faltar esclarecimento e uma rede de apoio, desculpem-me. Eu ainda não sei o que posso sugerir, mas vou descobrir.
[1] Gaslighting é uma forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade.

Iara Gonçalves Carrilho é uma jovem advogada, especialista em Ciências Criminais. Desde a graduação, estuda o cárcere. Escreve sobre o cárcere sob a ótica do feminino e as inúmeras violências que a desigualdade (ou melhor, a iniquidade) de gênero traz para a sociedade livre, e para além das grades. Em outubro, publicará seu primeiro livro "A Violência de Gênero Além das Grades", pela editora Lumen Juris, com Prefácio da Dra. Alice Bianchini.
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