Eu não queria ser mãe naquele momento
- Paula Chang
- 27 de set. de 2017
- 8 min de leitura
A história do meu aborto agora que tenho força para contá-la

Era novembro e estava de volta ao Brasil, após dois anos estudando na França. A vida em Paris não é tão sexy quanto as propagandas da Dior fazem parecer. Em outras palavras: foi um período de seca. Volto com tesão. Meu ex-namorado está solteiro e deixamos rolar um esquema de amizade colorida.
Em um dos nossos encontros, ele não para de reclamar da camisinha. Não para. Eu acabo cedendo e digo “ok” para a proposta de tirar antes de gozar. Infelizmente, o autocontrole dele é inversamente proporcional à sua autoestima e ele acaba gozando dentro. Ele sabe que eu não estou tomando nenhum anticoncepcional, e dá a desculpa de que ficou confuso com meus gemidos. Eu fico nervosa e, particularmente, irritada com ele por ainda por cima achar a situação engraçada. Corremos para a farmácia para comprar uma pílula do dia seguinte.
Passaram-se dois meses desde a minha última menstruação e estou preocupada com a possibilidade de estar grávida. Minhas amigas e o ex-namorado falam para eu não me preocupar, que deve ser só efeito colateral da pílula. Eu tento esquecer.
Como acabei de voltar para o Brasil, estou marcando diversos check-ups de rotina (faz dois anos que não acompanho nada): ginecologista, dentista, oftalmologista. Tenho uma consulta de rotina com um novo ginecologista.
Ele me dá a notícia de que estou grávida.
Saio do consultório em total desespero. Escrevendo sobre isso agora, e todas as vezes que eu penso nessa história, me vem o flashback desse momento em detalhes: sei a roupa que estou usando – um vestido coral com estampa asiática, um presente de aniversário das minhas roommates coreanas; sei como está o meu cabelo – um rabo de cavalo que termina em coque, minha escolha banal e inevitável em dias de calor; sei minha localização exata em São Paulo – Av. Brigadeiro Luís Antônio, andando em direção à Av. Brasil; e sei que minha cabeça está um furacão. Não consigo completar um raciocínio.
Tento disfarçar meu choro, porque estou no meio da rua. Sem forças, mas de maneira insistente, ligo para o ex-namorado. Seu celular só dá caixa postal. Decido ir para o apartamento dele e, em último caso, esperar na porta. Não sei mais o que fazer, não consigo acreditar que estou grávida. Levo 20 minutos num ônibus e depois mais 20 no metrô. Continuo tentando falar com o ex-namorado, talvez porque seja a coisa mais fácil que eu consiga pensar. Não consigo acreditar que estou grávida.
Aliás, é melhor dar um nome para o ex-namorado. Podemos chamá-lo, aleatoriamente, de: Babaca.
Peço informação sobre qual ônibus pegar da estação de metrô até a casa dele. Ando em direção ao ponto indicado e espero. Quando o ônibus está chegando, meu celular toca: é o Babaca, com voz de ressaca e de quem acabou de acordar. “Tinha me programado para te ligar depois da consulta, mas acabei indo numa festa ontem e só tô acordando agora.”, diz. Ele insiste em tentar fazer graça em situações desastrosas. Estou com a voz embargada, não preciso dizer mais nada. Ele me encontra no ponto de ônibus perto da sua casa. Quando o vejo não consigo mais segurar, desabo no choro.
Normalmente, eu seria a responsável por organizar nossos próximos passos, mas não estou em condições de lidar com nada, não consigo acreditar que estou grávida. Ele me pergunta o que eu quero fazer, no que estou pensando, se estou com fome. Não tenho respostas para nenhuma dessas perguntas. Estou secretamente desejando desaparecer do mundo ou acordar desse pesadelo. Nada disso acontece. Na realidade, ainda estou em choque, sentada na cama dele. Ele tenta ser mais proativo: “Deixa eu ligar para umas amigas e ver como isso funciona”, diz.
Eu falo para ele que não sei o que quero fazer e que isso significa não saber se quero abortar ou manter a gravidez. Ele insiste em pesquisarmos a respeito, nem que seja apenas para consultarmos as opções. Depois de algumas ligações, ele marca um horário numa clínica clandestina. Estou sem reação, não consigo acreditar que estou grávida.
Babaca é atencioso e solícito, mas faz questão de esclarecer duas coisas: “A decisão é sua” e “Caso você decida manter a gravidez, não quer dizer que a gente vá voltar”, como se eu estivesse morrendo de vontade de casar e viver feliz para sempre com ele, RÁ!
Na semana que vem teremos a consulta na clínica e até lá, eu espero, estaremos em melhores condições para tomar uma decisão. Eu me despeço para ir para casa. Quer dizer, ir para a casa do meu pai. Como acabei de voltar para o Brasil, estou morando temporariamente com meu pai e sua esposa. Os dois são bastante religiosos e eu sei a opinião deles sobre aborto, o que só faz aumentar o peso na minha consciência.
Sonho insistentemente que sofro um aborto espontâneo e acordo aliviada. Isso me ajuda a entender que não quero um filho agora, mesmo que não consiga assumir para mim mesma.
Babaca e eu vamos para a consulta no que parece ser uma clínica de classe média normal e aconchegante. Enquanto esperamos para ser atendidos, observo tudo e todos tentando decifrar como esse esquema clandestino funciona. Todos os pacientes que estão lá serão atendidos para interrupção de gravidez? Ou os médicos e funcionários têm algum código para nos identificar? Será que eles têm estratégias contra policiais infiltrados? Apesar da minha imaginação fértil, tudo parece banal. Babaca aproveita-se dessa oportunidade para dizer que ele quer assumir todas as despesas do procedimento. Eu falo que isso não faz nenhum sentido, já que nós dois fomos responsáveis pela gravidez. A assistente chama meu nome, é hora de subirmos para a consulta.
O médico rapidamente explica os procedimentos e custos. Eu estou com medo, pergunto dos riscos e das consequências quanto a futuras gestações. O doutor, impaciente, diz que já explicou que não tem risco nenhum. Eu faço um sinal para o Babaca acenando que estou de acordo. Nós marcamos uma data para o procedimento, mas a clínica vai entrar em recesso de final de ano, o que significa que ainda vou continuar grávida por mais 20 dias. Se você nunca passou por uma gravidez indesejada, não tem ideia do que isso realmente significa.
A consulta e a operação são caras. Eu tenho sorte de ter condições de cobrir os custos. Infelizmente, a maioria das mulheres no Brasil não têm esse privilégio. Elas arriscam suas vidas tentando soluções “faça você mesmo” ou indo em clínicas mais baratas, sem médicos qualificados ou equipamentos adequados. É uma das consequências da desigualdade no Brasil: se você tem dinheiro, pode fazer um aborto com seu médico de família em um hospital renomado e toda a estrutura vinculada a eles; se você é pobre, Deus, encarnado na forma de nossos parlamentares (em sua maioria homens), te proíbe de interromper uma gravidez.
O tempo de espera está me matando, os dias não passam. Estou com tanta vergonha que ainda não contei para ninguém. Estou angustiada e deprimida, com uma sensação permanente de que a qualquer momento vou explodir. Tenho medo de de repente sair gritando para todos os lados “Estou grávida! Estou grávida!”, descontroladamente. A situação está me enlouquecendo e eu decido falar com meu melhor amigo, Rafael. Quando finalmente tomo coragem e conto, ele olha para mim assustado e diz “Mas isso é sério!”, como se eu ainda não soubesse. Ele fica sem chão, desnorteado. Depois de se recuperar um pouco, Rafael diz que é contra aborto e sugere que eu mantenha a gravidez. Desesperado, ele oferece: “Eu te ajudo, a gente cuida do bebê juntos”, visivelmente apreensivo com a possibilidade de eu realmente aceitar sua proposta. Me encolho no banco do carro, desejando não ter dito nada. Aviso que está decidido e que não quero mais tocar no assunto. Também decido não contar para mais ninguém antes da cirurgia.
A situação não melhora e os dias ainda são torturantemente longos. As pessoas estão planejando férias, virada de ano e eu definitivamente não estou no mesmo clima. Nunca me senti tão sozinha – ainda com a expectativa de desaparecer do mundo ou acordar desse pesadelo. Mando um e-mail para o Babaca pedindo apoio, mas ele me ignora.
Estou uma pilha de nervos no dia da cirurgia. Durante as férias, pesquisas no Google me mostraram que já aconteceram diversas batidas policiais na clínica, com prisão de equipes em flagrante e que o doutor que eu havia consultado perdeu sua licença médica. Estou receosa pela minha saúde, mas também preocupada com a chance de policiais e jornalistas surgirem do nada em alguma batida. Não seria a melhor forma de dar a notícia para os meus pais, ter minha cara estampada na capa dos jornais com a chamada “Garota satânica é presa minutos antes de realizar aborto. Polícia salva feto!”?
Na sala de espera, digo ao Babaca que, como não dividimos a carga emocional, eu aceito que ele seja inteiramente responsável pela parte financeira. Ele não objeta. Estou com muito medo, fujo para o banheiro para chorar. Quando volto, está na hora de irmos para o segundo andar. A assistente nos leva para um quarto, onde o Babaca vai esperar, e sai. Eu aproveito a oportunidade para lhe pedir: “Se acontecer qualquer coisa comigo, liga para o Rafael. Não liga para os meus pais. O Rafael vai saber o que fazer”. As enfermeiras chegam para me levar, eu deito na cama de hospital, fecho meus olhos e peço ao universo que tudo corra bem.
A sala de cirurgia é fria. Contrastando com todo o resto da clínica, é um ambiente inóspito. Parece um pouco improvisada, o que me deixa mais nervosa. O anestesista se aproxima, pergunta sobre meu histórico de alergias e me coloca para dormir. Eu só acordo quando as enfermeiras estão me levando de volta para o quarto. No corredor, cruzamos com outra menina sendo levada em sua cama de hospital. Antes de saírem do quarto, as enfermeiras passam as instruções: “Descanse e não vá ao banheiro pelas próximas horas”. Vou alternando entre sono e semiconsciência, quando sinto uma intensa vontade de fazer xixi e uma dor aguda na uretra. Por sorte, fico grogue de novo rapidamente. Numa dessas brechas em que acordo gemendo de dor, o Babaca pede desculpas.
Depois de algumas horas, as enfermeiras voltam para checar como estou e autorizam a mijada mais libertadora da minha vida. Na sequência, sou liberada para ir para casa. Não estou sentindo alívio ou arrependimento, mas sim culpa. Fui ensinada que interromper uma gravidez é errado, não apenas por questões legais mas morais também.
Algumas semanas depois, como estou com um corrimento diferente e porque simplesmente não sei nada sobre as pessoas que realizaram minha operação, marco uma consulta com a minha ginecologista de confiança. Ainda não tenho o assunto bem resolvido comigo mesma, portanto não conto nada para ela. Ela diagnostica uma infecção bacteriana, comum após procedimentos cirúrgicos. Me faço de boba e sigo o tratamento que ela prescreve pelos próximos cinco meses.
Até hoje, não posso dizer que tenho confiança no que foi feito naquela sala de cirurgia. O sistema de saúde do Brasil falhou e eu deixei meu sentimento de culpa agir a favor da ignorância. Em tempo, depois da cirurgia, Babaca se recusou a pagar todos os custos conforme havia se comprometido.
Nos meses e anos seguintes à interrupção da gravidez, vou criando coragem para aos poucos contar para os meus amigos. A reação é sempre acolhedora e empática. No entanto, ainda não é o suficiente para mim. É um assunto incômodo, não fico à vontade ao falar sobre isso. Na maioria das vezes me emociono – o que deixa as outras pessoas desconfortáveis. Deixo o tempo passar. E começo a me informar sobre o assunto o máximo que posso.
Compartilhando minha história com os outros, conheci diversas mulheres que realizaram aborto, em países onde se é permitido ou não, e me interesso por saber como cada uma de nós lidou com todo esse processo. Apesar das múltiplas diferenças, nunca escuto a história de uma decisão que tenha sido leve.
Depois de seis anos, finalmente consigo dizer em voz alta: eu não queria ser mãe naquele momento. Não consigo me imaginar criando um filho com o Babaca. Eu decidi interromper minha gravidez porque, considerando tudo, eu não estava pronta. Me arrependo de confiar no coito interrompido e na pílula do dia seguinte, mas não me arrependo do aborto.
*Revisão por Clarice Batista Farina.
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