top of page

"Eu me sinto em guerra", declara juíza especialista em violência doméstica

  • Bruna de Lara
  • 14 de jul. de 2016
  • 5 min de leitura

Juíza Adriana de Mello fala sobre o combate à violência doméstica em entrevista coletiva a alunos de jornalismo da UFRJ. Foto: Breno Crispino

Acelerar o atendimento a mulheres em risco de vida. É esse o objetivo do Projeto Violeta, idealizado em 2013 por Adriana Ramos de Mello, juíza titular do 1o Juizado de Violência Doméstica e Familiar do TJRJ. Em vigor há dez anos, a Lei Maria da Penha prevê um período de até quatro dias entre uma queixa e a decisão judicial sobre a medida de proteção de urgência. Com a iniciativa, a espera caiu para quatro horas.

– A medida protetiva é o coração da Lei Maria da Penha – diz a juíza, temporariamente afastada do juizado para exercer o cargo de auxiliar do presidente do Tribunal para questões sociais. Ela afirma que o índice de descumprimento da medida é baixo. O envolvimento da justiça costuma fazer o homem perceber que passou dos limites, apesar de ser comum que ele não entenda as agressões como crimes, por enxergar a mulher como posse.

Identificados com tarjas violeta, cor que simboliza compaixão e transformação, os casos mais graves são levados de imediato às juízas e juízes, ativando um protocolo de atendimento integral, realizado em parceria com a Polícia Civil, a Defensoria Pública, o Ministério Público e os setores de psicologia e serviço social. Durante a espera, as vítimas permanecem em salas de cor violeta, protegidas da exposição comum nas delegacias e nos tribunais.

O atendimento humanizado proporcionado pelo projeto é previsto em lei, mas, no geral, não é posto em ação.

– O que pegou foi a parte punitiva – comenta Adriana, ressaltando a importância dos poucos centros de atendimento às mulheres vítimas de violência, que hoje sofrem com a falta de verbas e começam a fechar.

De autoria do senador tucano Aloysio Nunes, o PLC 07/2016, que altera pela primeira vez a Lei Maria da Penha e tramita em caráter de urgência no Senado, poderia provocar uma melhoria no atendimento às vítimas – não fosse pelo artigo 12-B. Incluído no apagar das luzes, sem diálogo com as mulheres, o item concede aos delegados de polícia poder para expedir medidas protetivas, sem o envolvimento de um juiz.

Criticado por juristas e pelo movimento feminista, o projeto é, segundo Adriana, um retrocesso. Um dos méritos da Lei Maria da Penha, para ela, é justamente ter ajudado as mulheres a acessarem a justiça. Antes, os casos de violência doméstica não raro ficavam parados nas delegacias, onde as vítimas eram orientadas a desistir da queixa. Essa realidade não se alterou por completo, mas, ao dispensar a participação da justiça nesse primeiro momento, o PLC pode agravar a situação.

– É uma questão de direito de acesso à justiça, que é algo muito mais amplo do que uma disputa de poder entre delegado e juiz – afirma, sublinhando que a expedição de uma medida protetiva deve caber apenas aos magistrados, por se tratar de uma forma de restringir a liberdade de um indivíduo. Para ela, cabe à justiça, e não a um delegado, pesar se alguém deve ou não ter seus direitos cerceados.

Denunciar um caso de violência doméstica é sempre difícil, o que explica, em parte, o alto índice de subnotificação do crime. Mas, para algumas mulheres em especial, é ainda pior. O acesso a todas as políticas públicas é mais difícil para as negras, ressalta a juíza – culpa de um racismo histórico que ficou ainda mais evidente com o Mapa da Violência 2015. Segundo o estudo, de 2003 a 2013, o feminicídio (assassinato de mulheres por razões de gênero) diminuiu 9,8% entre as brancas e aumentou 54,8% entre as negras.

No país que mais mata transexuais no mundo, as mulheres trans pouco chegam ao judiciário. De acordo com Adriana, elas têm procurado a justiça no âmbito civil, requerendo, por exemplo, o direito ao nome social. Porém, permanecem longe da esfera criminal, evitando as delegacias – provavelmente, acredita a juíza, por medo de serem mal tratadas pelos policiais.

Como parte de uma sociedade machista, a polícia e a justiça são permeadas pela cultura de violência contra a mulher. Julgando o estupro de uma adolescente, Adriana se lembra de ouvir da mãe da menina: “O que minha filha passou no IML chegou a ser pior do que a violência que ela sofreu”.

Junto ao treinamento dos profissionais que lidam com a violência doméstica, à implantação do atendimento integral e à aplicação das sentenças, é preciso investir também em centros de reeducação para os agressores – outra política pública prevista em lei e comumente ignorada. O Projeto Violeta encaminha agressores a grupos autorreflexivos, acompanhados por psicólogos e assistentes sociais. Em oito encontros, cerca de dez homens dividem sua percepção sobre drogas, álcool, violência contra a mulher e a Lei Maria da Penha.

Em um primeiro momento, conta Adriana, eles tendem a se defender, culpando a mulher por estarem ali e pela violência cometida. Do terceiro para o quarto encontro, porém, eles passariam a refletir sobre seu papel no ciclo de violência que impunham às parceiras e a entender melhor conceitos como machismo e patriarcado. A reincidência desses homens é, segundo a juíza, muito baixa. Em São Paulo, onde há dois programas do tipo em funcionamento, a média de reincidência é de 11%.

– Cultura não se muda com decreto, se muda com educação – afirma Adriana, que defende a realização de grandes campanhas de conscientização e da inclusão das questões de gênero na educação, desde a infância, para prevenir a violência. – A gente não pode discutir gênero, porque tiraram do Plano Nacional de Educação – critica.

Adriana explica que a justiça já trabalha com a violência consumada e que, apesar de considerar a repressão importante, é preciso ir além dela.

– Enquanto a gente não entender isso, vamos ficar na ponta, curando os sintomas só, não chegamos na raiz – avalia.

Em seus 20 anos de magistrado, 15 deles julgando casos de violência contra a mulher, ela afirma que só viu a violência aumentar. Seus primeiros anos como juíza foram passados em Duque de Caxias, onde grande parte dos casos envolviam violência contra a mulher. Ela se especializou na área, com um mestrado e um doutorado e, em 2006, quando a Lei Maria da Penha entrou em vigor, sua vara foi a primeira a ser transformada em juizado de violência doméstica.

O preconceito dentro da magistratura com a luta pela causa da mulher sempre esteve presente. “Já vem você com essa história de mulher que apanha”, ela costuma ouvir.

– Já briguei com meio mundo e arrumei inimigos, porque respondia à altura.

Hoje, o aumento do conservadorismo no país a preocupa. Uma visita recente de três semanas a Brasília, motivada pelo PLC 07/2016, a surpreendeu de forma nada positiva.

– Fiquei apavorada – relata a juíza – A gente conversa com um senador, ele não tem percepção nenhuma do que é gênero, do que é violência contra a mulher.

Para ela, o momento político é “péssimo”, marcado por retrocessos e pela interferência da religião no legislativo. Os projetos que dificultam ou proíbem por completo a realização do aborto em casos de estupro são, para ela, algo que “jamais poderemos permitir”.

– Eu me sinto em guerra – declara, fazendo um apelo aos jovens – A gente tem perdido algumas batalhas, mas não a guerra total. Se politizem, se apropriem dessas discussões e lutem contra isso. Não sejam passivos.

Comentários


Comentários

leia também:

bottom of page