Ser mulher diminuiu o mundo para mim
- Juliana Guzzo
- 30 de mar. de 2016
- 4 min de leitura

“O que você já deixou de fazer por ser mulher?”. Muitas páginas de redes sociais lançaram essa pergunta do dia 8 de março, dia internacional da mulher e eu fiquei pensando em várias coisas até hoje.
Na hora que eu li não me veio nada à cabeça. Fui lendo os comentários dos posts de várias matérias sobre mulheres ao longo desse mês. Matérias de negócios, de assassinatos, de outras violências, matérias de qualquer coisa e os comentários absurdos em todas elas. O que eu já esperava realmente era a verdade, vários horríveis eram de mulheres.
Eu decidi há muito tempo não me envolver em bate-bocas pela internet, mas essa pergunta se somou há muitas coisas que eu pensava. Eu devo ser machista em muita coisa sem perceber. Afinal somos parte do meio em que vivemos (que é machista, patriarcal) e muitas das coisas que aprendemos viram hábitos tão automáticos que só nos damos conta do absurdo quando somos confrontados por outra visão sobre o assunto. É assustador perceber que você sem saber agia de uma maneira que reforçava coisas que você não acredita, que não defende e que te agridem direta e indiretamente.
“O que eu já deixei de fazer por ser mulher?”. Muitas coisas, mas todas se resumem em uma única frase: eu deixei de viver sem medo. Tenho medo quando o motorista do ônibus apaga a luz e tem um homem sentado do meu lado. Também sinto o desconforto da maioria deles, preocupados em esbarrar em mim sem querer e eu achar qualquer coisa errada. Tenho medo de ir ao cinema sozinha. Se vou me sento na fileira mais cheia possível. Tenho medo de me matricular num curso noturno, de aceitar um trabalho em que eu precise sair muito tarde, tenho medo de tantas coisas que nem fazia ideia que tinha tantos antes de me dispor a pensar nisso.
Como toda menina, adolescente, mulher, já passei por situações absurdas, abusivas, que constroem o medo dentro de nós. Lembro de estar brincando numa fazenda quando era bem pequena e minha mãe me prender no colo dela, depois se trancar no carro comigo enquanto esperava meu pai terminar um trabalho. E dela voltar enfurecida pra casa. Anos mais tarde fui entender que ela viu o dono do lugar olhando com malícia para mim, acho que se ela pudesse teria arrancado os olhos dele ali mesmo. Eu também teria. Anos mais tarde, já pré-adolescente sentei ao lado de um senhor deficiente físico, pai de uma vizinha, enquanto aguardava o ônibus pra casa. Ouvi um absurdo tão grande que fiquei sem reação pra responder, também devido a idade dele, ao estado de saúde em que se encontrava e a educação que eu recebi.
Agora adulta passei por algo muito ruim, que me levou até a prestar queixa na polícia e adivinhem: não aconteceu nada! Estava vindo da cidade onde eu morava para casa dos meus pais, uma viagem longa, de lugares marcados. O motorista parou em um ponto e deixou um passageiro embriagado, com uma lata de bebida na mão embarcar, comprando passagem na hora para a cidade vizinha. Isso não é comum, todos os motoristas orientam as pessoas a esperarem o ônibus regular. Do degrau do ônibus o cara já começou a mexer comigo. Sentei na poltrona do corredor e coloquei os pés no vidro para impedir a passem dele, caso quisesse se sentar ali. Pois ele quis e se passou esfregando nos meus joelhos. Eu o empurrei, me queixei ao motorista, pedi para parar no posto policial, COMO TODO MUNDO TEM DIREITO DE PEDIR E SER ATENDIDO, e ele não parou. Foi um caos, um inferno, 45 minutos com o cara me agredindo verbalmente, cuspindo em mim, socando meu banco, me ameaçando. Não, eu não estava sozinha no ônibus! Ninguém me ajudou, ninguém! Ainda tive que ouvir que eu tinha arrumado aquela confusão de uma senhora e de outra que o marido dela não ia se meter no problema dos outros. Eu disse que elas se lembrariam de mim quando as netas fossem estupradas um dia. Não estava jogando praga, longe disso, mas o mundo é assim, nossa omissão de hoje, reflete no amanhã.
Quando chegamos à cidade de desembarque do cara que me agrediu ele sumiu e eu tive que ouvir do motorista: “Desculpa, mas não pude fazer nada, vai que ele marcava a minha cara?”. Eu morreria de raiva de ouvir isso de qualquer jeito, mas ouvir de uma pessoa que foi seu vizinho por anos, que conhece sua família, que também tem filhas foi muito pior.
Um senhor que embarcou nesse ponto ficou transtornado com a história, discutiu com o motorista, deu um sermão nas pessoas que estavam no ônibus e falou comigo para prestar queixa, que tinha filhas da minha idade e nem podia imaginá-las passando pelo que eu passei. Duas amigas minhas subiram ao ônibus nesse ponto também e me ajudaram a ficar calma. Uma delas já tinha acordado nessa mesma linha com um cara esfregando o pênis na perna dela, mas diferente do meu caso o motorista agiu e expulsou o cara do ônibus na mesma hora.
Liguei para os meus pais, eles me buscaram na rodoviária da minha cidade e fui à delegacia. Fui muito bem tratada pelo escrivão, que pacientemente registrou minha queixa e disse que como tinha ocorrido em outra cidade precisaria transferir o caso para lá. Fiquei com o protocolo, cheguei a ir à delegacia da cidade que eu morava, mas nunca fui chamada. Um tempo depois fiquei sabendo que essa transferência não funciona muito bem e que eu devia ter reclamado direto com a empresa que teria demitido o motorista imediatamente.
Fiquei sem viajar de ônibus em viagens longas por um bom tempo. Mais um medo para minha conta! Hoje eu temo ter uma filha mulher e sufocar a menina com todos esses meus medos. Dependemos da companhia de outras pessoas para ter segurança, ser mulher ainda é viver num mundo restrito a locais, horários, vestimentas, condutas. Ser mulher diminuiu o mundo para mim, espero que se um dia eu tiver uma filha que o mundo dela seja bem maior...
Texto orginalmente publicado no blog "Juju Guzzo".
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