Miopia seletiva
- Sara Ribeiro
- 3 de nov. de 2015
- 3 min de leitura

Ilustração por Raquel Thomé
Saí de casa às 7 da manhã, para ir à faculdade, numa terça-feira de dezembro, fazer a última prova do ano. Ao atravessar a rua, um caminhão me atropelou e, pelo que eu entendi de relatos e da perícia, fui arrastada por mais ou menos 10 metros com o pé esquerdo embaixo da roda do caminhão.
A amputação foi abaixo do joelho e, depois disso, fiquei 3 meses em cima da cama sem poder começar a andar de forma alguma. Os médicos diziam que eu não conseguiria ter uma vida normal depois disso e sempre andaria "manca" ou "torta", mas que tudo ia ficar bem. Hoje, eu faço boxe, trabalho voluntário como palhaça em hospitais, faculdade, saio para festas, vou em shows, fiz tirolesa, tomei banho em cachoeiras, fiz patinação no gelo, aulas de zumba e milhões de outras coisas.
Desde aquele dia, nunca mais acordei com o pé esquerdo. Literalmente. A parte boa é que eu tenho, tipo, quatro pernas mecânicas iradas agora. A parte ruim é que o calor de trinta graus do Brasil dificulta muito a minha vida, com o lance do suor dentro da prótese e de como as crianças piram quando me veem caminhando como um transformer por aí.
As pessoas não estão acostumadas com pessoas como eu. Eu assusto. Eu causo reboliço. Ninguém simplesmente fica sabendo e diz "ok". Ninguém evita o olhar de pena. Eu não me sinto representada quando as séries nos retratam como psicopatas, como vilões, como apenas pessoas com deformidades que não precisam ser vistas. Eu não me sinto representada quando a grande maioria de deficientes na televisão são homens, ou atletas, ou pessoas que servem como inspiração para a humanidade.
O problema é que eu não me sinto deficiente. Eu não me sinto menos. Ou pior. Ou incapaz. Eu me sinto oprimida. Por um sistema que exige que você seja "normal". Que exige que você não chame atenção. Onde estão as outras mulheres que assistem ao filme Guardiões da Galáxia e ficam realmente muito mal quando veem um guaxinim falante roubando a prótese de um cara apenas pra divertir o público? Nós não somos engraçados. Não somos aberrações. Nós somos apenas pessoas tentando encontrar a si mesmas. Mas não é assim que o mundo funciona, certo? Se você usa óculos, você é nerd. Se você usa aparelho, é feia, baranga, coitada. Se usa uma prótese, você é um miserável digno de pena.
Eu tenho andado de calças quando o sol lá fora brilha a 40 graus. Eu tenho omitido de fichas que tenho prótese. Eu tenho falado em baixo tom, para professores da academia, que meus exercícios precisam de adaptação. Desde então, eu tenho negado quem eu sou para tentar ser quem os outros são. Embora pareça uma boa saída, nunca deu certo. Sempre tem alguém que descobre. Alguém que presta atenção na forma como a calça jeans fica embolada no ferro que deveria ser meu tornozelo. Sempre tem alguém atrás da fila do detector de metais no aeroporto. Sempre existe alguém que vai me fazer ter vontade de não ter sobrevivido ao acidente. Essas pessoas me fazem pensar, nos meus piores dias, que morrer teria sido mais fácil do que tentar me adaptar a um mundo bípede. E isso simplesmente não pode ser aceito como algo normal. Não parece certo que eu tenha que viver a minha vida pensando em como teria sido melhor se estivesse morta. Esse é o mundo em que vivemos. O mundo que julga você por coisas que você não escolhe. Eu não escolhi ser atropelada por um caminhão e ficar sem parte da minha perna pelo resto da vida. Eu não desejei isso. Mas os olhos nas ruas, assustados e incomodados, me informam que, sim, eu escolhi. Que sim, eu incomodo. É uma pena que, ao invés, eu tenha escolhido continuar em frente. Que, ao invés do que dizem, eu consigo sim caminhar muito bem e sem mancar. Que, ao invés, eu tenha direito a 1% das vagas dos concursos públicos e isso possa meter medo. Que, ao invés, eu tenha direito a passe livre nos ônibus, porque temos políticas públicas que, de alguma forma, funcionam nesse país de corrupções e fome. Que eu consigo sim correr de vez em quando e praticar lutas. Deve ser mesmo muito incômodo. Eu, toda deformada, ter que falar isso para uma população de pessoas perfeitas. Mas não vou me desculpar.
Texto revisado por Lilian Farias.
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