Os homens que amavam outros homens
- por Ana Luiza Albuquerque
- 28 de set. de 2015
- 4 min de leitura

Ilustração por Raquel Thomé
Dois homens de 23 anos, amigos desde os 13, assistem um seriado na TV. O primeiro veste calça jeans e blusa de marca. Cabelo aparado e roupa passada pela empregada doméstica. Uma mão segura uma garrafa de cerveja e a outra cai pelo braço da poltrona. Pernas abertas, queixo empinado, voz grave. Posição dominante.
O segundo parece recém-saído de uma reunião do DCE. Coque alto na cabeça, barba por fazer, calça de pescador, havaianas. A blusa diz que gentileza gera gentileza. Deita no sofá. Em uma mão, um baseado. Na outra, um isqueiro. Os olhos vermelhos encaram a TV.
- Nossa, que rabão! - exclama o primeiro, cumprindo orientações do protocolo-de-amizade- macho-hétero durante uma cena de sexo.
A interação não acontece, mas ele não desiste. Tenta mais uma, duas vezes. Só ouve murmúrios. Sente o ambiente cada vez mais silencioso, a não ser pelos falsos gemidos da atriz principal. O incômodo preenche o cômodo até que...
- Putz, essa aí é demais! Fala aí, qual delas tu comia primeiro?
- Sei lá, cara! - responde o segundo, irritado.
- Tu não gosta de mulher mesmo não, né?
O Homem Abercrombie tem certeza que gosta de mulher - e também quer ter certeza que seus amigos agem como homens. Como homens que gostam de mulheres. Como homens que respondem instintivamente a coxas, peitos e bundas. Não necessariamente nessa ordem. Não necessariamente de todos os tipos. Questão de gosto. O Homem Abercrombie, por exemplo, gosta das mulheres loiras, magras, que usam salto e maquiagem. Elas provavelmente são muito mais do que isso, é claro, mas ele gosta de esvaziá-las de sentido. Gosta de acreditar que elas existem apenas para compor a sua narrativa privilegiada. Gosta de pensar que são apenas acessórios quando desfila pela night - assim como seu rolex e seu copo de Absolut com energético. Gosta de contar para os amigos: "Tá vendo aquela aqui? Tô comendo". Questão de gosto.
O Homem DCE, por sua vez, tem certeza que gostar de mulher é outra coisa. Ele gosta de conviver com mulheres, gosta de ouvir o que elas têm a dizer. Gosta de escutar sua namorada falar sobre feminismo. Gosta até mesmo quando ela enfrenta o Homem Abercrombie. Sente orgulho. Gosta de se dizer "um machista em desconstrução", principalmente em rodinhas de humanas. Gosta também de sentir que é diferente de seus amigos. Que é um cara legal.
Aos 15 anos o Homem Abercrombie espalhou um boato de que havia comido a menina mais gata da sala, que ficou conhecida como a "piranha" do colégio. Aos 18, foi acusado por uma ex-namorada de agressão física, mas convenceu a todos que a garota era louca, exagerada, obcecada por ele. Seus amigos não hesitaram em acreditar. Aos 20, vazou fotos de outra ex pelada. "Se tirou, sabia do risco", assinou em baixo um amigo. O grupo do whatsapp, inclusive, passou a ser uma ferramenta essencial na sua vida: compartilhava vídeos de mulheres que tiveram a intimidade violada e até mesmo fotos que tirou na rua de peitos e bundas aleatórios. Ou seja, sempre cumpriu com destreza o papel de um homem - um homem de verdade, que gosta de mulher.
A amizade do Homem DCE e do Homem Abercrombie se mantém apenas por tradição, mas uma coisa os dois têm em comum: o amor por outros homens. Ambos se sentem completos por fazerem parte de uma irmandade masculina. Ficam extasiados com a presença dos amigos da mesma maneira que ficavam aos 10 anos, gostam de contar histórias que são bem recebidas, precisam ser engraçados, ou ao menos irônicos, e perseguem avidamente a aprovação da manada.
O Homem Abercrombie entende que seu papel é ser bem sucedido como um macho alfa - e todo o seu trabalho iria para o lixo se não pudesse esfregar na cara de outros homens suas conquistas. Vai ao bar e fala com facilidade sobre futebol, drogas, mulheres e outros prazeres mundanos. O assunto flui. Ali ele é rei. Apresenta o melhor skank da roda. Anuncia festas com música boa, drogas e, é claro, mulheres. "Vai ter muita mulher boa", garante. Impõe sua voz, fala que o próximo balde é na conta dele e sorri. Talento nato. Quem diz que mulheres são competitivas nunca prestou atenção no Homem Abercrombie.
Já o Homem DCE fica meio perdido no ambiente. Olha os amigos do colégio com certo ar de superioridade.
- Porra, polícia tem que bater nesses pivetes mesmo, se não eles não aprendem.
"Racista", pensa.
- Tá ligado que a Mariana colocou silicone? Ela parece uma porca né, mas com aquelas tetas...
"Machista e gordofóbico", pensa.
- Caralho, a Fernanda tá muito chata. Oh, já tá ligando de novo. Porra de TPM.
"Misógino", pensa.
- A festa tava maneira sim, mas tinha muito paraíba... E viado pra caralho.
"Elitista e homofóbico", pensa.
O Homem DCE não sabe bem o que está fazendo ali, mas não consegue ir embora. Diz pra si mesmo que não aguenta mais, que nunca mais vai sair com eles. Mas volta. No fundo ele ainda gosta de ser um dos caras, mesmo que na maior parte do tempo só acene e sorria. Como não quer ser chato, fica calado. Se pergunta por que ainda precisa da aprovação masculina. "Um dia eu descontruo isso", promete a si mesmo. Hoje ele vai deixar passar. Vai voltar pra casa e abraçar a namorada. Os dois vão rir da pergunta do Homem Abercrombie.
- Tu não gosta de mulher mesmo não, né?
Revisado por Cibele Justino.
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