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Entre a policial heroína, a feminista justiceira e a preta barraqueira

  • Suzane Jardim
  • 25 de ago. de 2015
  • 4 min de leitura

Talvez você tenha lido pelo Facebook uma postagem sobre o que estão chamando de “a heroína do dogão”. Não seria difícil, afinal, foram mais de 180 mil curtidas e 40 mil compartilhamentos na postagem original em apenas um dia.


E isso não é louco?


Porque, pra mim, diz muito sobre nossa sociedade.


Digo isso porque quando entramos na militância, seguimos páginas, grupos virtuais e outras militantes feministas, vemos com muita frequência em nossos feeds histórias e relatos de mulheres enfrentando o machismo e a misoginia.


Eu mesma vejo denúncias, lutas, casos de enfrentamento, desabafos e nunca, nunca mesmo, vi nenhum caso desses atingir nem metade do número de curtidas que a história da policial feminina alcançou.

Lembro, por exemplo, do ano passado quando iniciei uma campanha virtual para encontrar meu agressor, na época foragido da justiça. Foram vários compartilhamentos e muito apoio, mas já pensou se essa iniciativa tivesse atingido quase 200 mil curtidas? O tamanho da comoção? Talvez jornais me procurassem e o impacto da divulgação faria com que esse cara estivesse na cadeia. Teria sido incrível e talvez hoje eu não precisasse viver com tanto receio e medo do rapaz que mora em minha cidade e pode ainda acabar impune.


Julgando o ato de curtir como sinal de aprovação, fico apenas aqui pensando: e se fosse qualquer outra mulher sem um distintivo e sem o poder de fogo concedido pelo Estado a reagir diante de um caso semelhante?


Porque, vejam bem, basta uma garota gritar contra seu agressor que ela se torna uma justiceira, é comparada aos que amarram jovens negros nos postes, é atacada e tem sua atitude questionada pela maioria. Basta uma garota reclamar de assédio que é posta como exagerada, vitimista, não sabe aceitar um elogio. Basta uma garota se impor pedindo espaços exclusivos, pedindo respeito e expondo situações de machismo pelas quais passou que sempre teremos uma multidão apontando para dizer o quanto sua atitude é segregacionista, misândrica ou o quanto ela só quer chamar atenção.

E se essa garota for negra e periférica? “Barraqueira”, “favelada”, “sem postura”, o velho estereótipo da negra alucinada e raivosa que não sabe se controlar. Vendo toda essa disparidade quanto ao tratamento e divulgação do caso só consigo cogitar o quanto esse viral soa como um retrato da lógica legalista em que essa sociedade está imersa.


"Hum, a moça da história é uma policial então deve ter tomado a atitude certa, não tem o que questionar, toma aí meu like".


E não é triste pensar nisso quando sabemos dos vários e vários casos onde exigem que vítimas mostrem um B.O para terem suas falas validadas, onde relativizam violência por essa não ter sido oficialmente denunciada e reservam às garotas que reagem sem o aval oficial da lei o título de histéricas, justiceiras e exageradas? Não é preciso ser versada em estatística, politicas públicas ou ser uma grande intelectual feminista para ter conhecimento da dificuldade que mulheres encontram para denunciar agressões, estupros e maus tratos diversos. Muitas vezes lidam caladas com o assunto por anos graças ao medo dos ataques, da culpabilização e da relativização que, muitas vezes, encontram logo no primeiro passo: na delegacia. O que separa então a calada, a justiceira e a heroína?

Podia eu ter sido a “heroína do dogão”?

Talvez.

Mas não com esse nome.

Meu “ato heróico” atingiria apenas outras mulheres como eu - cansadas, de mãos atadas e que gostariam muito de poder responder e intimidar o machista típico quando o encontrar na rua. Seria mais um relato dos que vejo todo dia no Facebook, com a diferença de que se fosse eu, negra e moradora da periferia, a puxar uma arma, é muito provável que terminaria na delegacia e com certeza sem glória alguma. Mulher alguma merece e precisa lidar com discursos machistas. Mulher alguma deveria ouvir “vá tomar no cu, sua puta!” quando responde a algo que a ofende. Mulher alguma deveria precisar lidar com a misoginia passivamente. O fato da “heroína do dogão” ser ovacionada por seu feito faz com que ela seja bem mais do que a figura da mulher que luta contra o machismo - ela é a figura do aparato policial agindo. Pra mim, é fácil imaginar o sujeito reacionário - aquele que bate na esposa, sabe? - lendo a história e pensando "Isso! É assim que se trata maloqueiro! Aponta a arma e manda pro chão! Pra isso que serve a polícia!".

A mesma lógica que está aí para matar preto e pobre todo dia.

A mesma lógica que põe uma mulher policial como “heroína” e todas nós, as que não temos o monopólio da violência, como “loucas”. Não que os machistas da história tenham se tornado pessoas maravilhosas com as quais eu quero sentar para bater um papo e ter amizade duradoura. Não acho de modo algum que são eles as vítimas, porém o conceito de desacato à autoridade é extremamente questionável e me surpreende a falta de recortes de grupos que pedem pela desmilitarização da polícia, mas aparentemente consideram que abuso da autoridade policial é bem vinda quando serve para validar nossas causas. Em resumo, quase duzentas mil pessoas não ligam de fato para o modo que as "de menor" são ou não tratadas. Não ligam também para o fato de que “bateram numa sapatona”. Muito menos para os possíveis tapas que homens acham justo dar na cara de uma mulher que não atende ligações.


Elas só curtem ver "a lei agindo" e adoram o fetiche da arma na mão.


Mas desde que registrada e com o aval do Estado.


Tente você se armar contra o machismo e seja a próxima a ser rendida.





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