A alienação de Fernanda é consequência da nossa história fraudada
- Gabriela Moura
- 5 de ago. de 2015
- 5 min de leitura

E então que a Fernanda Lima postou foto das babás que cuidam de seus gêmeos, afirmando que dá a elas a liberdade de não usarem branco como uniforme – como é comum na profissão.De um lado, admiradores da apresentadora parabenizando-a pelo grande gesto. O que seria o tal grande gesto? Tratar seres humanos como humanos e não como cidadãos de segunda classe ao impor uma vestimenta específica e estereotipada de uma das áreas do trabalho doméstico? Do outro lado, pessoas mais aguerridas sobre as questões raciais apontando o ato falho de Fernanda verbalizar a atitude como um ato benevolente. E, para completar, o primeiro grupo – dos admiradores e pessoas que não viram problema no ato – acusando o segundo grupo de vitimização, exagero, e todo o leque de vocabulário do senso comum. Voltemos no tempo e deixemos a nossa curiosidade remexer um pouco das verdades absolutas que nos foram impostas.
Para entender a situação dos negros no Brasil do século XIX
Na Constituição de 1824 - sim, bem mais antiga que a que vigora hoje - a segregação ficou mais explícita, impedindo os negros de frequentarem escolas.
1o. Os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua nação.
2.º Os filhos de pai brasileiro, e os ilegítimos de mão brasileira, nascidos em país estrangeiro, que vierem a estabelecer domicilio no Império.
3.º Os filhos de pai brasileiro, que estivesse em país estrangeiro, em serviço do Império, embora não venham estabelecer domicílio no Brasil.
4.º Todos os nascidos em Portugal e suas possessões, que, sendo já residentes no Brasil na época em que se proclamou a independência nas Províncias, onde habitavam, aderiram a esta, expressa ou tacitamente, pela continuação da sua residência.
5.º Os estrangeiros naturalizados, qualquer que seja a sua religião. A lei determinará as qualidades precisas para se obter carta de naturalização. (OLIVEIRA, 1995, pp. 68- 69)
O acesso dos negros às escolas só foi permitido em 1860. Até lá foi uma geração inteira de pessoas com o direito da educação negado. Quando você tem uma população completamente afastada compulsoriamente do ensino, os resultados são previsíveis.
O trabalho doméstico já foi uma das principais atividades da era escravagista, com força de trabalho indígena e africana. A libertação dos escravos aconteceu sem nenhum respaldo social ou econômico. É preciso lembrar, inclusive, que havia, sim, o plano de embranquecimento do país, isso se daria pela manutenção da hierarquia social, não oferecendo aos ex-escravos condições de sobrevivência e desenvolvimento.
“Das três raças que constituíram a atual população brasileira a que um rastro mais profundo deixou foi por certo a branca segue-se a negra e depois a indígena. À medida, porém, que a ação direta das duas últimas tende a diminuir, com o internamento do selvagem e a extinção do tráfico de negros, a influência europeia tende a crescer com a imigração e pela natural tendência de prevalecer o mais forte e o mais hábil. O mestiço é a condição dessa vitória do branco, fortificando-lhe o sangue para habilitá-lo aos rigores do clima”.
Havia também a repressão a praticantes da capoeira, que era considerada crime, e aos chamados vagabundos, homens negros e pobres que lutavam nas ruas do Rio de Janeiro contra as condições precárias impostas. Enquanto isso, crianças e adolescentes recém-libertas formavam parte do contingente de trabalhadoras domésticas. Alguns patrões entravam com pedido de tutela de menores – órfãos pobres -, tendo-os dentro de suas residências da maneira legal e institucionalizada, e fazendo-os trabalharem de maneira compulsória. O trabalho infantil feminino não remunerado foi facilitado por uma portaria imperial de 1835, e difundiu-se rapidamente por cidades como o Rio de Janeiro, onde era alimentada a tradição de que menores de 12 anos não poderiam solicitar um salário caso o patrão já arcasse com sua alimentação e vestimenta.
Estas criadas envelheciam sem nunca terem tido condição para manter uma poupança ou outra forma de economia financeira que lhes assegurasse uma velhice com condições mínimas de sustento, terminando em asilos ou abandonadas na rua. Esta situação as mantinha em miséria, permitindo a manutenção da pobreza daquela população.
Tanto tempo depois, as mulheres negras ainda são maioria no trabalho doméstico. De lá pra cá, criou-se no imaginário uma posição confortável, permeada por ideais como “ela é quase da família” e “é um trabalho como outro qualquer”.
A primeira ideia é falsa, ao passo que as relações familiares não abraçam realmente a empregada. O documentário “Doméstica”, de Gabriel Mascaro, deixou este relacionamento explícito. Ao mesmo tempo em que os patrões eram veementes na afirmação de que suas “ajudantes do lar” eram da família, a estas mulheres eram destinados os famigerados quartinhos dos fundos e a vida na periferia, bem longe das grandes casas. O programa Profissão Repórter, da Rede Globo, também abordou o tema recentemente, embarcando nas pautas sobre a PEC das Domésticas, que deixou o assunto em evidência. Na transmissão, uma mulher que trabalha como doméstica ganhando meio salário mínimo ouviu da entrevistadora a pergunta: Você gostaria de ganhar mais? O que faria com o dinheiro? A resposta: sim, para comprar as minhas coisas, comprar comida.
Então, estes estudos e abordagens deixam clara a necessidade de sairmos do lugar-comum quando usamos uma história única como exemplo para toda a condição trabalhista de um grupo.
Já a afirmação de que o trabalho doméstico é como qualquer outro também merece atenção. Seria como qualquer outro se todas as trabalhadoras tivessem escolhas de carreira que não fosse unicamente a faxina, por exemplo. Em uma atividade onde são comuns as jornadas de 10 a 12 horas, e tendo em conta a distância entre a residência e o local de trabalho, também compreendendo que muitas delas são chefes de família, não é de se espantar que não sobre tempo e faltem condições para que estas agentes sociais reflitam sobre sua própria condição. E negar o debate é admitir que o mundo ficará exatamente como está.
Portanto, Fernanda Lima pode não ter percebido, e é bem provável que tenha postado a imagem de forma absolutamente inocente. Esta alienação às problemáticas do estereótipo do trabalho doméstico, porém, não a torna imune às críticas recebidas, principalmente pelo fato de que estas ressalvas foram feitas também por membros do movimento negro.
Muita dessa dificuldade na aceitação de debates raciais se dá pela romantização da história do negro no Brasil, inicialmente retratado como mero escravo e humano dotado de baixo intelecto e, portanto, tendo servido apenas para trabalho braçal, e que depois foi salvo pela heroína Isabel. As escolas nos fazem acreditar nisso. A boa notícia é que a mesma internet que dá espaço a reverberações violentas como os comentários nas notícias sobre Fernanda Lima e as babás, também é o espaço que permite pesquisa e entendimento sobre a história de nosso país, sem a necessidade de acreditar fielmente no que nos foi passado em anos de apagamento da História da África e foco quase exclusivo na História da Europa. O único ingrediente necessário é disposição para deixar a preguiça de lado.
Fernanda talvez seja inocente, e para ela talvez seja bom como está. É o que dá ter tido nossa história fraudada.
Fontes:
Moura, Gabriela. Mulher negra – empregada doméstica: origem escravista e manutenção de castas sociais.
SAKAMOTO, Leonardo. Por que a Lei Áurea não representou a abolição definitiva?
GONÇALVES DOS REIS, Fabio Pinto. Cultura escrita e escravidão brasileira: algumas práticas e seus significados no século XIX.
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