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A solidão e a desolação

  • Marcela Lagarde
  • 13 de jul. de 2015
  • 5 min de leitura

*Texto traduzido e originalmente publicado pela zine Heretica Difusão Lesbofeminista Independente.



Nos ensinaram a ter medo da liberdade; medo de tomar decisões, medo à solidão. O medo à solidão é um grande impedimento na construção da autonomia, porque desde muito pequenas e toda a vida nos formaram no sentimento de orfandade; porque nos fizeram profundamente dependentes dos demais e nos fizeram sentir que a solidão é negativa, ao redor da qual há toda uma classe de mitos. Esta construção se reforça com expressões como as seguintes “Vai ficar sozinha?”, “Por que tão sozinhas garotas?”, mesmo quando estamos em muitas mulheres juntas.


A construção da relação entre os gêneros tem muitas implicações e uma delas é a de que as mulheres não estamos feitas para estar sozinhas dos homens, senão que o sossego das mulheres depende da presença dos homens[1], mesmo quando seja na forma de uma recordação.


Essa capacidade construída nas mulheres de nos criar fetiches, guardando recordações materiais dos homens para não nos sentirmos sozinhas, é parte do que tem que desmontar-se. Uma chave para fazer este processo é diferenciar entre solidão e desolação. Estar desolada é o resultado de sentir uma perda irreparável. E no caso de muitas mulheres, a desolação surge toda vez que ficamos sozinhas, quando alguém não chegou, ou quando chegou mais tarde. Podemos sentir a desolação a cada instante. Outro componente da desolação e que é parte da cultura de gênero das mulheres é a educação fantasística para a esperança. À desolação acompanha a esperança: a esperança de encontrar a alguém que nos quite o sentimento de desolação.


A solidão pode definir-se como o tempo, o espaço, o estado onde não há outros que atuam como intermediários com nós mesmas. A solidão é um espaço necessário para exercer os direitos autônomos da pessoa e para ter experiências em que não participam de maneira direta outras pessoas.


Para enfrentar o medo à solidão temos que reparar a desolação nas mulheres e a única reparação possível é pôr nosso eu no centro e converter a solidão em um estado de bem-estar da pessoa.


Para construir a autonomia necessitamos solidão e requeremos eliminar na prática concreta, os múltiplos mecanismos que temos as mulheres para não estar sozinhas. Demanda muita disciplina não sair correndo a ver a amiga no momento em que ficamos sozinhas.[2] A necessidade de contato pessoal em estado de dependência vital é uma necessidade de apego. No caso das mulheres, para estabelecer uma conexão de fusão com os outros, necessitamos entrar em contato real, material, simbólico, visual, auditivo ou de qualquer outro tipo.


A autonomia passa por cortar esses cordões umbilicais e para lograr isso, se requer desenvolver a disciplina de não levantar o telefone quando se tem angústia, medo ou uma grande alegria porque não se sabe quê fazer com esses sentimentos, porque nos ensinaram que viver a alegria é contá-la a alguém, antes que simplesmente gozá-la. Para as mulheres, o prazer existe somente quando é compartilhado porque o eu não legitima a experiência; porque o eu não existe.


É por tudo isso que necessitamos fazer um conjunto de mudanças práticas na vida cotidiana. Construímos autonomia quando deixaremos de manter vínculos de fusão com os outros; quando a solidão é esse espaço de onde podem nos passar coisas tão interessantes que nos põem a pensar. Pensar em solidão é uma atividade intelectual distinta que pensar frente a outros.


Um dos processos mais interessantes do pensamento é fazer conexões; conectar o fragmentário. E isso não é possível fazer se não é em solidão.


Outra coisa que se faz em solidão e que funda a modernidade é duvidar. Quando pensamos frente aos outros o pensamento está comprometido com a defesa de nossas ideias. Quando o fazemos em solidão, podemos duvidar.


Se não duvidamos não podemos ser autônomas porque o que temos é pensamento dogmático. Para ser autônomas necessitamos desenvolver pensamento crítico, aberto, flexível, em movimento, que não aspira a construir verdades e isso significa fazer uma revolução intelectual nas mulheres.


Não há autonomia sem revolucionar a maneira de pensar e o conteúdo dos pensamentos. Se ficamos sozinhas unicamente para pensar nos outros e outras, faremos o que sabermos fazer muito bem: evocar, rememorar, entrar em estados de nostalgia. O grande cineasta soviético Andrei Tarkovski, em seu filme “Nostalgia” fala da dor do que é perdido, do passado, aquilo que já não se tem.


As mulheres, somos especialistas em nostalgia e como parte da cultura romântica se torna um atributo de gênero das mulheres.


O recordar é uma experiência da vida, o problema é quando em solidão usamos esse espaço para trazer os demais ao nosso presente, ao nosso centro, nostalgicamente. Se trata então de fazer da solidão um espaço de desenvolvimento do pensamento próprio, da afetividade, do erotismo e da sexualidade próprias.


Na subjetividade das mulheres, a onipotência, a impotência e o medo atuam como diques que impedem desenvolver a autonomia, subjetiva e praticamente.


A autonomia requer converter a solidão em um estado prazeroso, de gozo, de criatividade, com possibilidade de pensamento, de dúvida, de meditação, de reflexão. Se trata de fazer da solidão um espaço onde é possível romper o diálogo subjetivo interior com os outros e outras e no qual realizamos fantasias de autonomia, de protagonismo mas de uma grande dependência e onde se diz tudo o que não se faz na realidade, porque é um diálogo discursivo.


Necessitamos romper esse diálogo interior porque se torna substitutivo da ação; porque é uma fuga onde não há realização vicária da pessoa porque o que faz na fantasia não o faz na prática, e a pessoa fica contente pensando que já resolveu tudo, mas não tem os recursos reais, nem os desenvolve para sair da vida subjetiva intra-psíquica ao mundo das relações sociais, que é onde se vive a autonomia.


Temos que desfazer o monólogo interior. Temos que deixar de funcionar com fantasias do tipo “lhe digo, me diz, lhe hago”. Se trata mais bem de pensar “Aqui estou, quê penso, quê quero, para onde, como, quando, e por quê” que são perguntas vitais da existência.

A solidão é um recurso metodológico imprescindível para construir a autonomia. Sem solidão não somente ficamos na precocidade senão que não desenvolvemos as habilidades do eu. A solidão pode ser vivida como metodologia, como processo de vida. Ter momentos temporais de solidão na vida cotidiana, momentos de isolamento em relação com outras pessoas é fundamental. E se requer disciplina para isolar-se sistematicamente em um processo de busca do estado de solidão.


Vista como um estado do ser – a solidão ontológica – a solidão é um fato presente em nossas vidas desde que nascemos. No ato de nascer há um processo de autonomia ao mesmo tempo, de imediato se constitui em um processo de dependência. É possível compreender então, que a construção de gênero nas mulheres anula algo que ao nascer é parte do processo de viver.


Ao crescer em dependência, por este processo de orfandade que se constrói nas mulheres, nos cria uma necessidade irremediável de apego aos outros.


O trato social na vida cotidiana das mulheres está construído para impedir a solidão. O trato que ideologicamente se dá à solidão e à construção de gênero anulam a experiência positiva da solidão como parte da experiência humana das mulheres. Converter-nos em sujeitas significa assumir que de veras estamos sozinhas: sozinhas na vida, sozinhas na existência. E assumir isso significa deixar de exigir aos demais que sejam nossos acompanhantes na existência, deixar de impor aos demais que estejam e vivam com a gente.


Uma demanda tipicamente feminina é que nos "acompanhem" mas é um pedido de acompanhamento de alguém que é fraca, infantil, carenciada, incapaz de assumir sua solidão. Na construção da autonomia se trata de reconhecer que estamos sozinhas e de construir a separação e distância entre o eu e os outros/as.




[1] Substituiría a expressão como ‘na presença de um outro significativo’, embora a autora se dirija as mulheres heteros, acho que essa socialização é comum a todas que nascem mulheres num heteropatriarcado. Mas como ele tem origem no machismo, essa educação a princípio existe para manter o sistema da heterossexualidade compulsória, mesmo quando essa se replica em dinamicas não-heteros. (N. T.)


[2] Ou senão, chamar ao celular ou abrir facebook e redes sociais... revisar e-mails compulsivamente, e outros rituais para preencher esse vazio que é o encontro com uma mesma (N.T.).


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