Vamos falar sobre a descriminalização do aborto?
- por Adauana Campos
- 18 de fev. de 2015
- 6 min de leitura
Eu sou #proescolha
Fui criada por uma família cristã e conservadora. A vida para mim é, e continua, sendo sagrada. Por isso, hoje, depois de amadurecer e desconstruir muitas ideias a respeito da vida e seus valores, sou agnóstica e troquei os valores morais da bíblia pelos Direitos Humanos.

Não que esse seja o caminha certo mas, é o melhor pra mim. É o caminho que me permitiu evoluir como ser humano.
Tá, mas o que isso tem a ver com aborto?
A visão moral e cristã da vida me fazia ver vida em tudo, até em um amontoado de células, menos vida na mulher. Imaginem a cena: uma mulher adulta transando sem camisinha. A pílula falha. Ela engravida. Não pode ter o filho. Decide abortar. Não tem dinheiro para fazer um procedimento seguro. Mas faz o inseguro. Ela morre.
Agora imaginem essa cena: uma mulher adulta transa sem camisinha. Ela não toma pulula. Ela engravida de propósito. Acorda e diz: é hora de fazer um aborto.
Sabe por que você consegue visualizar a cena 1 e a 2 não? Porque a 2 NÃO EXISTE. Nenhuma mulher que decide abortar o faz tomando essa decisão facilmente ou porque quis engravidar de um filho que ela não quer/não pode ter.
Eu engravide da minha filha mais velha com 18 anos, faltavam poucas semanas para o meu aniversário. Fiquei estarrecida. Não era casada, apenas namorava. Fui expulsa de casa e da igreja que eu frequentava. Me consideraram transgressora e apóstata. Meu pecado? Transar sem camisinha com o meu namorado.
Em nenhum momento o aborto foi para mim uma opção viável. A maternidade aconteceu na minha vida, sem planejamentos. A Rebecca nasceu de parto normal, com 40 semanas de gestação, com 2,450kg e 46cm. Pequena e magra. Nasceu e só dormia, nem mamar queria. Talvez a depressão e o estresse que passei na gestação a tenham afetado.
Sempre fui muito presente na vida da Rebecca. Ela mamou até os 2 anos de idade e entre mamadas e cuidar da casa sempre trabalhei fora. Meus sonhos? Viagens? Faculdade? Deixei no modo stand by. Não podia realizar sonhos e pagar creche, trabalhar já era o suficiente. Nunca consegui vaga em uma creche municipal para minha filha, sua vaga nunca saiu da fila de espera.
Passaram-se 7 anos. Nesse período eu nunca abri mão de usar camisinha com meu marido. E tinha como certeza que a Rebecca seria filha única.
Em uma bela noite a camisinha estourou. Estava no período fértil. De madrugada não teria onde comprar a pílula do dia seguinte. Não tinha carro e onde eu moro não há farmácias próximas. Saímos no horário do primeiro ônibus. Tomei a pílula do dia seguinte... Engravidei.
Uma gravidez difícil. Mal podia andar ou me levantar da cama. Sentia dores e tinha sangramentos diários. Tinha medo do bebê nascer com alguma deficiência por causa da pílula, ou de morrer, visto que minha pressão subia decorrente daquela gravidez. O médico combinou que aos 7 meses eu passaria por uma cesárea mas até lá devia permanecer em total repouso. Assim eu fiz. Mas tive um aborto espontâneo na 18º semana de gravidez.
Me senti mal. Me senti aliviada pela minha vida. Me senti culpada.
Tantos sentimentos confusos oriundos de um trauma: o aborto.
Logo após abortar comecei a tomar pílula. O GO me prescreveu. Dizem que a culpa foi minha, que eu não tomei direito. E fiquei grávida, de novo, após ter tido um aborto espontâneo há cerca de dois meses atrás.
Uma gravidez em que o meu GO ficou muito preocupado. Estava me recuperando de um trauma, minha pressão ainda estava alta. Não podia ter outro bebê. Segundo o GO tinha um grande risco de dar tudo errado, mas que iriam me acompanhar de perto para dar tudo certo.
E deu. A gravidez foi tranquila. Minha pressão arterial normalizou e no dia 30 de julho de 2012 comecei a sentir as contrações. Mas a Esther nasceu de cesárea, fez “cocô” antes de nascer, ou seja, entrou em sofrimento fetal.
A Esther foi uma alegria na minha vida. Com ela eu pude viver momentos que arrancaram de mim na gestação da Rebecca. Fiz o enxoval do meu gosto, escutei músicas calmas, fiz chá de bebê, tirei muitas fotos da minha barriga. Senti paz. Me senti segura e apoiada. Tive 4 gestações, mas só vivi plenamente uma.
Em 2014 engravidei. Troquei de pílula porque a outra me fazia mal. E claro, não deu certo. Como sempre “devo ter feito algo errado”, como se anticoncepcional não falhasse.
Fiquei DESESPERADA. O sentimento e a vontade de abortar eram contínuos. Não podia ter outro filho. Três filhos? Não. Estou estudando, trabalhando, já havia deixado de viver tantos sonhos e de realizar tantos projetos pela maternidade, aos quase 30 anos, não admitia ter que abrir mão, de novo, da minha vida.
Mas não interrompi a gravidez. Ela seguiu adiante. A gestação estava sendo tranquila, sem problemas, sem complicações. A cada dia eu amava mais aquela criança. Se fosse menino seria Miguel e se fosse menina seria Raquel. Já tinha separado todas as roupas que a Esther não usava mais e guardado. Lavei o protetor de berço. Haviam muitas coisas que eu podia reaproveitar. Podia... Na 28º semana eu tive um aborto espontâneo. Não foi completo como da primeira vez.
O feto estava grandinho.
No hospital fui tratada com descaso. Cheguei aos prantos, pedindo para que me ajudassem. A GO me examinou e constatou o aborto. Perguntou friamente: “O que você fez? Você tomou alguma coisa?” Disse que não. “Então você caiu?” Não havia caído, não tomei nada. Mas de qualquer jeito, estavam procurando alguma culpa em mim.
A GO pediu para me internarem. Isso era por volta das 8:00 hs da manhã. Faria curetagem. Também prescreveu Ocitocina sintética. Na hora eu questionei, disse que se eu estava com dores, elas aumentariam, se não podia ser só soro ou alguma outra medicação. Disse que seria assim. Fiquei por horas tomando Ocitocina via endovenosa. Me colocaram uma fralda para eu não poder sair da cama. Pediram repouso.
Uma hora eu pedi para me levantar, estava me sentindo tonta. Devia ser 12:00 hs, e devido ao procedimento cirúrgico ao qual eu iria ser submetida, não podia beber e nem comer nada. A tontura se misturava as cólicas e dores de cabeça. Chamei ajuda, mas havia apenas uma técnica para atender muitas parturientes. Sim, eu estava internada junto com as mães que estavam em trabalho de parto. Procurei engolir o choro, para não atrapalhar a alegria delas.
Levantei e fui ao banheiro. Tirei a fralda e o feto estava lá. Foi uma cena forte. Gritei. Apareceram duas enfermeiras para me ajudar. Depois permaneceu uma. Ela trocou a minha fralda, me pediu calma e me deitou na cama. Disse que as dores iam passar. A moça da minha cama ao lado perguntou porque uma das enfermeiras saiu chorando. Não respondi e as dores não passaram. Continue sentido cólicas. Nisso passa a enfermeira com o meu feto em um saco plástico transparente. Segundo ela, iria para análise e depois lixo hospitalar.
À noite, depois de mais de 11 horas de internação, jejum, sede, cólicas e dores de cabeça chegou a hora da minha curetagem. Um procedimento cirúrgico para abortos incompletos e usado em clínicas clandestinas de aborto para interromper uma gravidez.
A curetagem tem como objetivo remover restos placentários fazendo uma raspagem na parede do útero, evitando complicações como por exemplo, infecções e até infertilidade.
Tomei anestesia geral. Dormi e acordei bem. Tinha acabado mais um pesadelo. Acordar sem dor foi uma das melhores coisas que tinham acontecido naquele dia. Meu marido finalmente pode falar comigo. Foi bom vê-lo. Nossas filhas estavam com a minha cunhada e ele teria que voltar para cuidar delas. Ele foi embora e passei a noite sozinha, sem acompanhante. Fiquei bem. Pela manhã ele e as meninas vieram me buscar. Foi uma alegria vê-las. Mas a depressão pós aborto veio depois, a qual venho tratando.
Mas por que eu contei a minha história?
Se o aborto não fosse criminalizado eu não tinha corrido risco de vida na minha segunda gestação e não tinha sido tratada como criminosa na última.
O fato de eu ter escolhido seguir adiante em todas os casos não deve servir para humilhar, diminuir ou culpabilizar outras mulheres que decidem não levar uma gestação a diante. Não sabemos os motivos que levam a essa atitude desesperada.
Segundo dados da OMS, a cada dois dias uma mulher brasileira morre por aborto clandestino e mais de um milhão o realizam por ano. Parem de estereotipar a mulher que decide abortar, a tachando de uma mulher jovem, promíscua e irresponsável. A maioria das mulheres que recorrem ao aborto são adultas, tem religião cristã e possuem relacionamentos estáveis ou foram abandonadas pelo parceiro. Fora as gravidezes geradas por estupro. Fora as gravidezes que colocam em risco a vida da mulher. Não envolva sua fé e sua religião, não envolva suas experiências pessoais e nem sua gestações que deram certo em uma decisão que deve ser laica e que já é um problema de saúde pública.
Tirem a ideia de que aborto é infanticídio. Aborto seguro é feito até a 12º semana de gestação, quando o feto não tem nem o sistema nervoso e nem o cérebro formados. Após isso, não mais. A descriminalização do aborto também impede que abortos clandestinos sejam feitos após esse período. Impede que mulheres morram. A criminalização do aborto só aumenta a mortalidade e as complicações decorrentes da prática clandestina. A lei não é eficaz em proibir abortos, é eficaz em matar mulheres. E é por essas mulheres que eu sou a favor da descriminalização do aborto.
E pra quem é contra o aborto, faça como eu. Todas as vezes que eu fui contra o aborto eu não o fiz.
Referência: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2013-09-20/clandestinas-retratos-do-brasil-de-1-milhao-de-abortos-clandestinos-por-ano.html

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