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50 Tons de Cinza: a romantização do abuso

  • Mirella Raposo
  • 13 de fev. de 2015
  • 4 min de leitura

Como quase todo mundo já sabe, devido ao sucesso enorme que a trilogia fez, "50 Tons de Cinza" virou filme e estreia esta semana, na quinta-feira (12). Para quem nunca ouviu falar da história, vamos a um rápido resumo: Anastasia, uma estudante comum de letras conhece um magnata, Christian Grey, e eles passam a ter um relacionamento. Depois ela descobre que ele tem gostos sexuais “peculiares”, como o próprio descreve. Porém, ainda que seja tratado como tal, a relação dos dois não se trata de um romance, e sim de um relacionamento abusivo que foi romantizado pela autora.


Mas por que se trata de um relacionamento abusivo, se ambos são adultos e houve consentimento nas práticas? Parece que há uma névoa em torno do que é um relacionamento abusivo. Inclusive, muitas de suas características já estão naturalizadas e são padrão na maioria das relações, não só monogâmicas, mas de todos os tipos, pois ninguém está isento de ser escroto pelas suas ideologias.


Mas, vamos lá: li um texto há algum tempo que mostrava 50 momentos abusivos em “50 Tons de Cinza”. Eu só vim começar a pensar sobre isso agora, em como minha visão de quando eu li o livro há uns três anos havia mudado radicalmente, e como eu não consegui enxergar certos absurdos completamente escancarados e vendidos como normais e aceitáveis, debaixo do manto do "consentimento".


Aparentemente, a suposta preocupação e cuidado do Mr. Grey são vistos como a mais profunda forma de demonstração de afeto. Eu até entendo que algumas pessoas desejem um cara como ele. Afinal, no próprio livro, ele é o pica das galáxias que se apaixona por uma garota comum, não merecedora de ter um relacionamento com um cara cobiçado e bem-sucedido. Mas, mesmo assim, ela é a única pessoa que ele quer e, por isso, faz de tudo para “conquistá-la”. O interesse se torna mútuo, então ela começa a descobrir o universo em que ele vive e a lidar com os tais gostos sexuais peculiares, mesmo que isso a faça se sentir mal.


Acontece que o que Mr. Grey faz não é conquistar. Perseguir, intimidar, tornar-se possessivo antes mesmo de terem qualquer relação como casal, avisar que é perigoso e que vai fazer mal a ela, porém, logo após isso, enviar presentes caros para sua casa (cujo endereço ele descobriu sem ela ter dado), rastrear seu celular para saber sua localização e levar Anastasia após ter bebido para o seu quarto de hotel NÃO configuram CONQUISTAR. Configuram um comportamento manipulador e doentio, cuja intenção é deliberadamente controlar a vida de Anastasia, antes mesmo de terem se beijado (não que isso seja aceitável em qualquer estágio de relacionamento).


Além das práticas cotidianas escrotas, que não param por aí (ele controla absolutamente tudo, desde o que ela come até a carreira dela, e nos outros volumes da trilogia ele simplesmente COMPRA o local onde ela trabalha e diz que compraria qualquer outro em que ela viesse a trabalhar), Mr. Grey também se mostra abusivo em relação ao sexo. Sim, e nessa parte eu acredito que as pessoas impliquem mais ainda com a afirmação, alegando consensualidade. Parecem esquecer todas as nuances de um relacionamento abusivo. Depois de ele tê-la manipulado de várias formas, ainda querem falar de consensualidade?


Além disso, ele a ESTUPRA. Sim. Depois de ela se recusar a transar com ele, as palavras usadas são: “Se você lutar, eu vou amarrar seus pés também. Se você fizer barulho, Anastasia, vou te amordaçar”, então ele força o sexo, enquanto ela diz “não” e tenta fazê-lo parar. Aparentemente, já que a escritora diz que Ana gostou da relação sexual, podemos ignorar o fato de que Mr. Grey ignorou completamente o fato de ela ter dito “PARE”. Sexo sem consentimento, imposto por violência ou ameaça é estupro SIM.


Quando Ana está confusa sobre o relacionamento e pede pra ele demonstrar o quão dolorosas as coisas podem ser, ele bate nela com um cinto seis vezes, até ela chorar, e não pergunta sequer uma vez se ela está bem. Depois disso, ela vai embora e diz que não tem como dar a ele o que ele precisa. Aqui fica claro que ela não é de fato masoquista, que ela se submeteu a esses abusos com o único propósito de agradá-lo, o que resultou num abalo emocional pra personagem.


Uma pessoa obviamente pode querer agradar a outra, mas quando o caso está dentro de uma estrutura de relacionamento abusivo, é óbvio que a questão não pode ser tratada de forma tão leviana quanto é a justificativa de “fez porque quis”. As mulheres sempre foram socializadas para agradar o macho, tanto na cama quanto no cotidiano, onde temos que ser dóceis e submissas e nunca, jamais, never pensar em ser rude (o que, muitas vezes, é simplesmente dizer o que nós sentimentos e queremos).


Logo depois de Anastasia se afastar, Christian faz o que abusadores sabem fazer espetacularmente, que é mudar o seu comportamento pra conquistar a pessoa de novo. E assim as coisas vão se repetindo, ele controla o que ela vai fazer, o que ela vai vestir, o que ela vai comer, dentre outras coisas. Mas tudo isso é justificado porque “eles se amam e é consensual”.


Durante as leituras que precederam esse texto, eu vi vítimas de relacionamentos abusivos tendo diversas opiniões sobre o livro: uma dizia que tinha pavor, pela forma romantizada com que é retratada a relação e a faz reviver o que ela passou em sua própria experiência. Outra dizia que é igualmente pavoroso, porque, assim como ela, a personagem do livro é mostrada se vendo com a responsabilidade de “melhorar” o abusador, de aguentar as coisas que ela sofre (afinal, o abusador leva a pessoa a acreditar que ela escolheu estar ali) para poder cuidar do seu parceiro. E é esse um dos principais motivos que leva muitas pessoas a continuarem em relacionamentos abusivos. Então, não venham com papo de consensualidade. Não existe isso depois de uma profunda manipulação e controle de um sobre o outro.


Meu objetivo não é impedir que ninguém assista ao filme. Eu só quero que, caso forem, assistam ao filme ou leiam os livros tendo noção de que Christian Grey não é um romântico incompreendido sexy e misterioso – é um manipulador escroto e doentio; de que Anastasia fez muitas coisas não simplesmente porque quis, mas porque, desde o início, ela foi induzida e manipulada, levada a crer que tinha alguma culpa ou responsabilidade; e de que, principalmente, essa história não se trata de um romance, e sim de um relacionamento abusivo.




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